Quando falamos de vampiros na literatura moderna, é difícil não mencionar Anne Rice. Em 1976, ela lançou “Entrevista com o Vampiro”, um romance que se tornou um marco no gênero de terror gótico e pode-se dizer que depois de Drácula de Bram Stoker é a obra que mais influenciou o imaginário popular sobre o que é um vampiro. O livro, contado do ponto de vista do vampiro Louis de Pointe du Lac, explora a imortalidade, a moralidade e a decadência de uma forma envolvente que faz jus a sua popularidade.
Em 1994, o romance foi adaptado para o cinema, dirigido por Neil Jordan e estrelado por Tom Cruise como Lestat, Brad Pitt como Louis, Kirsten Dunst como Claudia e Antonio Banderas como Armand. O filme capturou a atmosfera sombria e complexa do livro, embora com algumas mudanças para se adequar ao formato cinematográfico. Em 2022, “Entrevista com o Vampiro” ganhou uma nova vida na forma de uma série de televisão, produzida pela AMC, a série finalmente chega ao Brasil através do Prime Vídeo.
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Uma nova entrevista
A série se passa em 2022, após a pandemia, e é meio continuação, meio remake da história original. Daniel Molloy (Eric Bogosian), agora com 60 anos e sofrendo do início do mal de Parkinson, é convidado por Louis de Pointe du Lac (Jacob Anderson) para retomar a entrevista que iniciaram em 1973. Nesta nova entrevista que agora acontece em uma luxuosa mansão em Dubai, Louis espera esclarecer e revisar suas memórias, oferecendo uma versão mais honesta de sua história.
A primeira grande mudança em relação à história original, é que em vez de ser um proprietário de pessoas escravizadas no final do século XVII. Na série, Louis é um homem negro, dono de varios bordeis em Nova Orleans em 1910. Aos fãs mais apegados ao material original, pode parecer um crime, mas essa mudança de contexto adiciona uma nova camada ao personagem, permitindo uma exploração mais rica dos horrores do racismo na América de Jim Crow. Em uma Nova Orleans mais liberal, a riqueza de Louis o torna tolerado pela sociedade branca, mas apenas até certo ponto.
Até que chega a cidade o misterioso Lestat. Vindo da França, ele se encanta por Louis quando o vê ameaçando o próprio irmão com um punhal. Lestat vê na forma com que Louis se sente em relação à sua posição na sociedade, sendo um homem negro, assim como sua sexualidade reprimida, uma oportunidade para seduzir Louis. Ele genuinamente se irrita com a condição social de Louis, dizendo: “Este país primitivo limpou você!” diz em determinada cena.
A tristeza pela morte repentina do irmão de Louis se mostra como o estímulo que o leva à servidão de Lestat e, consequentemente, à dualidade da imortalidade. Em um encontro de paixão e salvadorismo branco, Lestat transforma Louis em um vampiro, acreditando que isso fortalecerá seu companheiro. Mas nunca consegue perceber, algo que seu amante entende intuitivamente: nem mesmo a imortalidade substitui a raça.
Família Tradicional Vampiresca
Diferente do filme de 1994, onde a relação homoafetiva entre Louis e Lestat fica no subtexto, a série aborda de forma explicita que os personagens vivem um romance, ao mesmo tempo, carnal e complexo. Mas a conexão que se inicia em um tom meio de comédia romântica, com Lestat mostrando a Louis sua “nova vida” aos poucos se transforma. A medida que os episódios avançam, a relação torna-se cada vez mais tóxica e abusiva. O que me levou até a fazer uma alusão com o “daddy issues” e a busca por figuras paternas que pessoas LGBTQIAP buscam em vínculos com pessoas mais velhas, mas aqui são devaneios meus.
A dinâmica se complica ainda mais com a introdução de Claudia (Bailey Bass). Transformada em vampira aos 14 anos, Claudia é adotada pelo casal com a intenção de tentar melhorar a relação que já estava desgastada. A personagem adentra rapidamente na trama, mas à medida que o tempo avança, se encontra em sua própria angústia: sua mente vai amadurecendo, mas o seu corpo permanece como o de uma criança. Aos poucos essa angustia vai se tornando rancor e Cláudia percebe como Lestat é tóxico.
Os três protagonistas são autodestrutivos, obsessivos e presos em uma dinâmica de poder desequilibrada. No entanto, de alguma forma, torcemos por eles da mesma forma. Louis é um personagem complexo, marcado por uma profunda tristeza e angústia. Sua personalidade é introspectiva, frequentemente refletindo sobre sua moralidade e o peso da imortalidade. Lestat, por outro lado, é carismático, sedutor e egocêntrico, buscando satisfazer seus desejos hedonistas e manipulando aqueles ao seu redor para obter o que quer. Cláudia, a vampira criança, é ao mesmo tempo, adorável e perturbadora, carregando uma sabedoria além de seus anos e uma fúria contida devido à sua condição imutável.
Atuações sedutoras
Jacob Anderson traz uma profundidade impressionante a Louis. Ele exala uma arrogância confiante misturada com uma raiva borbulhante em seus dias mortais, transformando-se em uma explosão de tristeza e desespero após se tornar vampiro. Como narrador no presente, ele transmite uma calma misteriosa e uma sensação de controle, refletindo sobre sua vida com um arrependimento palpável.
Do outro lado, temos Sam Reid como Lestat. Reid entrega uma performance poderosa, capturando o charme e a sofisticação do velho mundo, ao mesmo tempo, em que exala uma ferocidade primitiva. Embora alguns possam achar sua atuação um pouco exagerada, Lestat é um personagem que demanda essa teatralidade.
A figura de Daniel Molloy também traz um contraponto fundamental na série. Diferente do livro e do filme, onde tínhamos um jovem de certa forma ingenuo. Aqui a experiência que seus 60 anos de vida lhe deram, faz com que a sua presença não apenas dê a estrutura à narrativa, mas também oferece um contraponto humano às reflexões de Louis. A interação entre Molloy e Louis em 2022 é carregada de tensão e introspecção, com Molloy questionando e desafiando as memórias de Louis, buscando uma verdade mais profunda.
“Entrevista com o Vampiro” é sombria, exuberante, sensual e teatral, mas de uma forma que se arrisca a dizer – perfeita. A série é visceral e violenta, mas cada elemento gore tem um propósito, não sendo meramente gratuito. A elegância da narrativa de época alterna-se com tropos clássicos do terror gótico, criando um equilíbrio entre romance e momentos viscerais que lembram que nossos protagonistas são perigosos predadores.
A primeira temporada de “Entrevista com o Vampiro” é um grande acerto. Ela traz novas camadas aos personagens, explorando temas contemporâneos e sociais enquanto mantém a essência sombria e envolvente do material original. A série consegue ser fiel ao espírito do livro, ao mesmo tempo, em que atualiza a narrativa para um público moderno. Se você é fã do livro ou do filme de 1994, ou simplesmente gosta de uma boa história de vampiros com profundidade emocional e complexidade, “Entrevista com o Vampiro” é uma recomendação obrigatória.
Onde assistir “Entrevista com o Vampiro”
A primeira temporada da série está disponível no Prime Video