Tatuagem: a beleza da liberdade e a potência da arte em um espetáculo belíssimo {Crítica}

“O Moulin Rouge do subúrbio. A Broadway dos pobres. O Studio 54 da Favela”. Em mais de duas horas de espetáculo, “Tatuagem” entrega uma arte genuinamente brasileira, quase como um grito de amor, resistência e liberdade. A peça é uma adaptação do longa-metragem Tatuagem (2013), do diretor e roteirista Hilton Lacerda, um filme que já conquistou grande público e consagra-se como uma obra linda, emocionante, forte e cativante. Ter um espetáculo como este, de forma viva, orgânica e respirando nos palcos é uma dádiva e um privilégio imenso. É uma experiência que aquece o coração e torna a esperança mais real e palpável. É um sentimento que nos invade. É euforia, alegria, amor, paixão, revolta, êxtase e tantas outras emoções que circundam um espetáculo complexo no sentir, mas simples ao retratar a vida como ela é e acessível ao comunicar e deixar sua marca no espectador.  

Sinopse

Recife, 1978. A trupe teatral Chão de Estrelas é liderada pelo extravagante Clécio Wanderley e tem Paulete como a principal estrela do grupo. Numa noite de show, eles recebem a visita do cunhado de Paulete, o jovem Fininha, que é militar. Encantado com o universo criado pela companhia, ele logo é seduzido por Clécio. Os dois iniciam um tórrido relacionamento, que coloca Fininha frente a um grande problema: lidar com a repressão existente no meio militar em plena ditadura. Um espetáculo sobre o amor e a liberdade em tempos de opressão.

Companhia: Cia da Revista (@ciadarevista)

A beleza está na entrega do conjunto e no convite para se esbaldar na liberdade

Um cenário modular, vivo, orgânico que se torna uma extensão do elenco, como uma orquestra de corpos no palco que dançam e mudam os cenários de forma leve e natural. Toda a estrutura montada no palco impressiona pelas inúmeras possibilidades de atuação em cena, e claro que isso só funciona de forma muito habilidosa e talentosa do elenco que passeia pelas cenas num ritmo ágil e fascinante. Para complementar, temos uma banda talentosíssima, linda em sonoplastia e potente musicalmente, acompanhando perfeitamente o ritmo do espetáculo e sendo o ponto mais alto de presença e peso artístico do espetáculo. No visual, temos figurinos com personalidade, nada complexos, autenticamente brasileiros e claros ao comunicar nas performances o papel de cada ator e seu momento em cena. 

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Foto: Maringas Maciel / Festival de Curitiba

A orquestra de tantos elementos converge perfeitamente com os tons e timbres que dão vida ao espetáculo. É o musical que transforma esta experiência em algo inesquecível. Músicas com letras potentes, fortes e arrebatadoras são interpretadas por vozes brilhantes que preenchem o teatro e vibram em nossos corações. Pedro Arrais interpretando Clécio é o fio condutor com uma voz majestosa, imponente e emocionante. André Torquato, que interpreta Paulete, nos invade com sua voz rasgada e que sai sem esforço, sendo um dos artistas com a voz mais potente do espetáculo e que faz jus ao furacão que é sua personagem. Vicente Ferreira, que interpreta o protagonista Fininha ao lado de Clécio, trabalha com uma voz limpa e lindíssima. Mas quem rouba nossos corações nas performances é Larissa Noel, com uma voz impecável, clara, imensa no soar e que domina as cenas. 

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Foto: Humberto Araujo (@humbertooaraujo) / Festival de Curitiba

És belo, és forte, impávido colosso

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Foto: Humberto Araujo (@humbertooaraujo) / Festival de Curitiba

Humor irreverente, enérgico, inteligente e que flerta com o Brasil de 2024. Nas performances, temos o lado satírico da peça, que vai muito além do viés cômico e mostra-se como atos de liberdade, transformação, originalidade e principalmente resistência. Os diálogos unidos aos momentos musicais se entrelaçam com o carisma do elenco que é surreal, principalmente na movimentação de palco e na interação com o público. O humor rasgado e de cabaré torna-se um ato de resistência frente à ditadura, lutando contra a censura e o ódio à liberdade, mas ao mesmo tempo nos preenche com muita irreverência e nos conecta de forma pessoal e identificável. 

O elenco nos abraça, arrebata nas vozes e timbres e triunfa na interpretação

O elenco de ‘Tatuagem’ é o mais apaixonante e digo que o fator responsável pelo grande sucesso da peça, oferecendo uma experiência marcante na interpretação e, principalmente, no carisma. Falando em carisma, é Roma Oliveira, que interpreta Marquinhos Odara, o dono e proprietário da irreverência do momento mais hilário da peça. Sua originalidade e, pelo que entendi, um pouquinho de improviso também, o transforma em um personagem que talvez merecia um pouquinho mais de tempo de palco para entregar ainda mais momentos marcantes. 

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Foto: Humberto Araujo (@humbertooaraujo) / Festival de Curitiba

No protagonismo, Pedro Arrais e Vicente Ferreira entregam um casal que carece de mais química e conexão, mas acredito que isso não seja problema de atuação pois ambos possuem uma excelente presença de palco. De um lado, Pedro entrega um Clécio vigoroso, forte e empoderado nas cenas, além de uma interpretação brilhante que enaltece o talento de Pedro. Já Vicente, entrega o tímido Fininha, ou Arlindo, que representa toda a inocência e imaturidade e consegue transparecer isso perfeitamente na atuação, de maneira contida e medrosa. 

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Foto: Humberto Araujo (@humbertooaraujo) / Festival de Curitiba

O que se destaca também é a personagem da Avó de Fininha, com uma presença hilária em cena por representar uma senhora devota e com trejeitos fantásticos. Por outro lado, não justifica-se a presença da personagem Deusa, interpretada por Bia Rezi, na configuração do elenco, que inclusive é de uma qualidade artística imensa, tanto na voz quanto na interpretação. Não utilizar de todo o talento de Bia Rezi para compor ainda mais os musicais e oferecer um peso maior na narrativa é um pecado, assim como a ausência do personagem do filho de Clécio, parte importante da história. O que mais carecemos também é a falta que a presença de Paulete para bagunçar o palco e ser um tornado de emoções e autenticidade em cena. Paulete fica talvez um pouquinho mais em segundo plano, mas nos momentos que aparece, é sempre um marco em cena e entrega a unicidade de sua personagem.

Pecados na duração, andamento, roteiro e enredo, mas um arco artístico triunfal 

Com cerca de duas horas e vinte de duração, mesmo com um uma pausa entre os dois atos e uma finalização linda, poética e inspiradora do primeiro ato, o espetáculo talvez peque um pouco ao se prolongar muito, mas acredito que o problema maior não seja a duração, mas o desenvolvimento do roteiro e a construção do enredo. Nós temos aqui uma obra que nasceu como longa-metragem e já tinha uma roupagem muito artística e até um pouco abstrata. Ao levá-la para o teatro, nós temos uma grande potência artística sendo explorada e exaltada nos palcos, e deixo aqui que este é um grande triunfo e de uma qualidade imensa na entrega da obra de forma orgânica, presente e real. O que nos falta aqui, é entender um pouco mais a narrativa sem uma abordagem artística que deixa a história nas entrelinhas, é aprofundar ainda mais os personagens e, principalmente, a grande conexão entre os protagonistas para criar uma química e deixar mais palpável esta paixão avassaladora entre os dois. Termos uma experiência cinematográfica é muito diferente da experiência orgânica do teatro, que exige às vezes entregarmos mais peças para o espectador montar um quebra-cabeça, não só para entender, mas sentir e se emocionar. Faltou lenço para enxugar as lágrimas. Faltou sentido para as relações, para as vidas dos personagens que circundam este musical. 

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Foto: Humberto Araujo (@humbertooaraujo) / Festival de Curitiba

Outro ponto, é que as cenas explícitas do espetáculo talvez se mostrem um pouquinho tímidas, tentando não extrapolar os limites da liberdade ou quebrar os tabus de um corpo nu, ou até mesmo normalizar isso. Talvez o corpo nu se coloque de uma forma um pouco fetichista em alguns momentos, principalmente se tratando da atração reprimida sobre a militarização. Tornar o espetáculo ainda mais livre pode trazer ainda mais força para a resistência e para este ser um instrumento essencial para comunicar isso. Ao flertar principalmente com manchetes atuais, de 2024, que apresentam um pouco da censura às vezes velada e cada vez mais explícita e sem medo de dar as caras, o papel do teatro tem que ser revolucionário e fazer ainda mais barulho. 

‘Tatuagem’ marca em nossos corações um espetáculo grandioso na arte, no amor e na liberdade 

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Foto: Humberto Araujo (@humbertooaraujo) / Festival de Curitiba

‘Tatuagem’ deixa a sua marca no Festival de Curitiba como um espetáculo vivo, lindo e com uma mensagem grandiosa e inspiradora, com um gostinho de “quero mais” e abrindo a possibilidade do espetáculo voltar em temporada para Curitiba. Ao sair do Guairinha ou Auditório Salvador Ferrante, o sentimento é de coração preenchido, além de felicidade, esperança e sobretudo coragem para viver o amor com toda a coragem, ainda mais sabendo que ninguém vai poder querer nos dizer como amar. Meu desejo que é “Tatuagem” desenhe seu sucesso Brasil afora, levando a preciosidade de Recife para brilhar nos principais palcos do país com seu elenco inspirador, sua banda impecável e a genialidade de Kleber Montanheiro como o mestre de toda essa orquestra. Vida longa ao teatro!

Escrito por

Alison Henrique

Publicitário, Empresário, Dançarino, Cantor, Estudante de Filosofia e, claro, APAIXONADO por Cinema, Arte, Música e Livros. Crítico de Cinema aqui no {Des}Construindo o Verbo com muito sentimento, emoção e boas reflexões pra gente mergulhar nas obras do cinema contemporâneo. Seja Ficção, Drama, Romance, DC, Marvel, Ficção Científica, Bom, Ruim, Médio ou Péssimo. A gente sempre vai se encontrar por aqui pra discutir um pouco sobre tudo. Instagram: @alisonxhenrique.