Boots

Se você olhar só para a sinopse, Boots parece mais uma daquelas séries que você coloca pra assistir num domingo de tédio, e de repente já está no terceiro episódio sem perceber. Ambientada nos anos 1990, a série é inspirada nas memórias The Pink Marine, de Greg Cope White, e acompanha Cameron Cope (Miles Heizer), um adolescente gay que decide se alistar no Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA. Ele está acompanhado do melhor amigo hétero, Ray McAffey (Liam Oh), e precisa atravessar os desafios físicos, mentais e emocionais do campo de treinamento em um período em que ser gay nas forças armadas era ilegal. A promessa é simples: sobreviver e, de alguma forma, se encontrar no processo.

Mas a beleza de Boots está na forma como a série constrói esse caminho. Não é sobre o “glamour” de ser soldado nem sobre o heroísmo clássico. É sobre adolescentes tentando descobrir quem são enquanto alguém grita com eles por horas a fio.

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Cameron e o peso da masculinidade

O ponto central da série é Cameron. Até a formatura do ensino médio, ele foi brutalizado pelos colegas, considerado presa fácil, e o alistamento surge como uma espécie de fuga — ou talvez um desafio que ele sente que precisa provar para si mesmo. A questão que a série coloca, e que persiste ao longo de toda a temporada, é se abrir mão da vulnerabilidade e abraçar a carreira militar significa autoconfiança ou apenas imersão em uma masculinidade tóxica. A resposta, como a vida real, é ambígua: é um pouco das duas coisas.

Ao seu lado, Ray funciona como contraponto. A série evita a armadilha do “meu melhor amigo é minha paixão secreta” e constrói uma amizade platônica sólida, permitindo que cada um se adapte ao novo ambiente de forma independente. Essa decisão narrativa dá frescor à trama e evita clichês românticos que não fariam sentido no contexto da história.

Boots - Cameron e Ray

Se você espera uma série queer cheia de romances e beijos calientes como Young Royals ou Elite, prepare-se: o lado mais gay de Boots é sutil e lento. Cameron só desenvolve uma quedinha perto do penúltimo episódio, e cenas de beijo praticamente não existem. É uma escolha narrativa que reforça a tensão e o medo de se expor em um ambiente hostil e que deixa claro que a série quer explorar amadurecimento mais do que romance.

Sullivan: o espelho, o mentor e o fantasma do futuro

O sargento Sullivan (Max Parker) é facilmente o personagem mais fascinante da série, e talvez o verdadeiro coprotagonista. Ele é o tipo de figura que se equilibra entre mentor, antagonista e espelho. Rígido, exigente e quase cruel, Sullivan enxerga em Cameron algo que talvez reconheça em si mesmo: sensibilidade, inadequação e uma força que ainda não aprendeu a usar.

A relação entre os dois é a espinha dorsal de Boots. Enquanto Cameron tenta se provar sem se trair, Sullivan tenta endurecê-lo sem admitir que o entende demais. O resultado é uma tensão constante, não só de poder e autoridade, mas de reconhecimento. É como se Sullivan representasse o “homem” que Cameron acredita que precisa se tornar para sobreviver naquele ambiente, e o preço emocional disso é altíssimo.

A série é mais interessante quando se concentra nesse vínculo. A cada olhar, a cada palavra dita com meio tom de provocação, existe uma espécie de duelo silencioso entre dois homens em pontos diferentes da mesma jornada. Sullivan não é vilão. É o produto de um sistema que transforma vulnerabilidade em fraqueza e, por isso mesmo, é o fantasma do que Cameron pode se tornar se seguir o mesmo caminho por tempo demais.

Max Parker rouba cenas não por gritar mais alto (embora grite bastante), mas pelas fraturas que deixa aparecer. Há momentos em que vemos Sullivan sozinho, e toda aquela certeza intimidadora se desfaz em algo muito mais complexo e doloroso. Parker cria um homem que acredita genuinamente que está ajudando os recrutas ao torturá-los, porque foi ajudado da mesma forma — um ciclo de violência tão perfeitamente normalizado que se tornou invisível.

O quartel como laboratório de masculinidade

O campo de treinamento é o verdadeiro campo de batalha da série. Boots se aproveita do formato de coming of age para mostrar como um ambiente moldado por rigidez e disciplina pode, ironicamente, ser o lugar onde meninos aprendem mais sobre si mesmos do que sobre guerra. Cada recruta tem uma ferida, uma insegurança, e o convívio forçado transforma esse quartel em uma metáfora viva da adolescência: suada, confusa, competitiva e repleta de segredos.

A série retrata o racismo, a homofobia e a gordofobia desenfreados que persistem na cultura da masculinidade militar, às custas de recrutas vulneráveis que são essencialmente assediados por sargentos. Alguns dos piores traços da masculinidade patriarcal estão expostos aqui, e a série raramente os questiona diretamente, deixando ao espectador a tarefa de analisá-los por conta própria. É uma escolha narrativa arriscada, pode parecer conivência, mas também pode ser lida como confiança na inteligência da audiência.

A direção faz um ótimo trabalho em equilibrar drama e humor. Há momentos de alívio, pequenas piadas internas e até cenas de camaradagem que quebram o peso do tema. Mas mesmo nesses momentos, paira a sensação de que o simples ato de existir — de ser diferente, de ser sensível, de olhar demais — pode colocar tudo a perder.

Vera Farmiga e a família em segundo plano

Barbara Hope, a mãe de Cameron (Vera Farmiga), é emocionalmente ausente, mas suas aparições deixam marcas. Ela é o tipo de mãe que se orgulha do filho, mas não o escuta. Que sente o vazio da partida, mas o preenche com a própria vaidade. Quando descobre o alistamento, ela sofre, mas logo rearranja o sofrimento em torno de si mesma.

Boots - Vera Farmiga

É um arco forte e bem interpretado, que merecia mais espaço. Toda vez que Farmiga aparece, a série cresce, o que só reforça o desperdício: Barbara é complexa o suficiente para merecer um spin-off, mas aqui acaba sendo mais uma peça deslocada em um quebra-cabeça que não lhe dá o tempo de brilhar.

É difícil não sentir frustração ao ver uma atriz desse calibre reduzida a aparições esporádicas que não acrescentam profundidade à história.

Quase sexual, mas não se atreve

A fotografia de Boots é quente, vibrante, e não tem medo de mostrar corpos suados, músculos tensionados, pele e calor. Há nudez, há contato físico, há desejo pulsando sob a superfície. E, ainda assim, a direção recua sempre que o erotismo começa a ganhar espaço.

O quartel é carregado de sexualidade: os personagens falam sobre como o ambiente é “gay”, sobre montaria, os 500 banhos coletivos diários e a quantidade de pinto que veem. Mas tudo fica no discurso. Cameron pode estar preocupado em se esconder, mas ainda assim é um adolescente gay cheio de hormônios cercado de corpos nus, suor e tensão — seria natural que o olhar dele carregasse desejo. Mas toda vez que a direção caminha para esse território erótico, ela recua, quase como se pedisse desculpas por estar fazendo aquilo.

E não é que uma série gay precise necessariamente trazer sexo ou nudez para funcionar. O problema é que Boots traz — os corpos nus estão lá, o calor está lá. Mas é tudo meio brochante, sem vontade, esvaziado de desejo. A série mostra muito e ainda assim se contém. Não é erótica, mas também não é assexuada. É polida. Sugere em vez de mostrar, cria desconforto em vez de prazer, insistindo numa sutileza que se sente totalmente deslocada diante do potencial sexual do contexto.

Performance e Presença: O Elenco Carrega o Peso

Miles Heizer carrega Boots nos ombros com uma performance que equilibra vulnerabilidade e crescente dureza. O ator mostra como é capaz de carregar a série inteira nos ombros e se virar sozinho. Há uma transformação física real acontecendo ao longo da temporada — não apenas os músculos que aparecem, mas a maneira como Cameron começa a ocupar espaço, a forma como seus ombros se alargam não apenas anatomicamente, mas energeticamente. Heizer entende que está interpretando alguém que está ativamente construindo uma máscara, e permite que vejamos tanto a máscara quanto o rosto embaixo dela.

Embora Cameron seja o personagem mais atraente da série devido ao fato de que estamos assistindo a tudo acontecer do seu ponto de vista, Sullivan é um personagem tão principal quanto ele. Na verdade, em algum momento, Boots é dividida em duas subtramas, nos dando uma história multigeracional que é definitivamente mais interessante do que apenas assistir homens gritando palavrões para meninos para torná-los “mais fortes”.

boots

O restante do elenco de apoio faz um bom trabalho, e você definitivamente se sente como se estivesse em um campo de treinamento de verdade. Felizmente, Boots compensa a falta de complexidade de alguns personagens com muita garra e atuações bem feitas em todos os níveis, incluindo vários atores com pouquíssimos papéis em suas carreiras. É fácil torcer por essa equipe de recrutas como um todo.

O Desconforto Político de Boots: Para Quem, Por Quê, Agora?

Por outro lado, em um momento tenso da história dos Estados Unidos, com os direitos LGBTQ+ sendo novamente atacados e o país usando seu poder militar como ferramenta de opressão, dentro e fora de casa, a pergunta inevitável é: por que lançar Boots agora? E, mais importante, para quem essa série realmente fala?

Não há respostas fáceis aqui. A série não é exatamente celebração acrítica das forças armadas — retrata violências sistêmicas demais para ser interpretada assim. Mas também não é condenação clara. Existe algo inquietante em acompanhar Cameron investindo tanto de si mesmo para ganhar aceitação em uma instituição fundamentalmente excludente, sem que a narrativa questione radicalmente se essa aceitação vale a pena ser buscada.

Talvez o desconforto seja o ponto. Talvez Boots não esteja interessada em oferecer respostas confortáveis sobre identidade, pertencimento e instituições de poder. Talvez esteja simplesmente documentando a complexidade brutal de querer pertencer a qualquer lugar quando sua existência já é, por si só, ato de resistência.

Quando Transformação e Destruição São a Mesma Coisa

Há uma cena no meio da temporada em que Cameron, exausto após mais um dia de treinamento brutal, olha para si mesmo no espelho e não reconhece completamente o reflexo. Não porque tenha mudado demais, mas porque não tem certeza se a pessoa que vê é quem ele sempre foi ou quem está se forçando a se tornar. É um dos momentos mais honestos de Boots, porque captura a ambiguidade essencial de toda transformação: nunca sabemos ao certo se estamos nos encontrando ou nos perdendo.

Assistir Boots é como observar alguém construir metodicamente as próprias correntes, convencido de que são asas. O treinamento militar opera aqui como metáfora brutal de todos os processos pelos quais passamos tentando nos tornar versões “aceitáveis” de nós mesmos. Cameron não está apenas aprendendo a marchar, atirar e obedecer ordens; está internalizando toda uma filosofia sobre o que significa ser forte, ser homem, ser digno de respeito.

Mas dito isso, ainda há muito coração em Boots, e acho que é isso que faz valer a pena o seu tempo. Quando uma série é pesada em temas sombrios, é fácil esquecer que ela ainda é feita para entretenimento. Boots não é uma série pesada nem quer ser. Ela não muda paradigmas, mas também não é vazia. É leve, divertida, espirituosa e, às vezes, até emocionante, mas com uma inteligência silenciosa que te pega de surpresa.

Ela fala de amadurecimento, desejo, medo e identidade, tudo dentro de um quartel que parece sufocar o que tenta nascer. Ao mesmo tempo, é uma série para ver sem pressa, no sofá, num domingo qualquer — e perceber, entre uma risada e outra, que existe mais profundidade do que o tom leve faz parecer.
Boots funciona melhor nas suas contradições do que nas suas certezas. Não é a história de amor queer picante que algumas pessoas podem estar buscando, nem é o drama militar convencional que outras podem esperar. É algo mais bagunçado, mais incômodo, mais difícil de categorizar. É sobre descobrir que força física e força de caráter nem sempre andam juntas. É sobre perceber que os lugares que prometem nos completar frequentemente exigem que deixemos partes de nós mesmos na porta.

A série não responde se Cameron fez a escolha certa. Não responde se o que ele ganha vale o que perde. Não responde nem mesmo se ele sai do outro lado mais feliz ou apenas mais forte — e se existe diferença real entre essas duas coisas. Deixa essas perguntas pairando, incômodas e necessárias, lembrando que as batalhas mais difíceis raramente acontecem em campos de guerra oficiais.

No fim, Boots é sobre aprender a ser quem você é em um lugar que insiste em te ensinar o contrário. E, se isso não for universal o bastante, nada é. Nos lembra que pertencimento sempre tem preço, e raramente somos informados do valor total antes de começarmos a pagar. Cameron entra no Corpo de Fuzileiros buscando transformação, mas descobre que transformação é palavra neutra — pode significar crescimento ou destruição, frequentemente ambos simultaneamente.

Assista o trailer de Boots

Onde assitir Boots

Todos os episódios da primeira temporada de Boots está disponível na Netflix

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Escrito por

Erick Sant Ana

Redator, negro, TDAH, amante da cultura geek e de uma boa coquinha gelada. Adoro histórias, sejam elas contadas através de livros, filmes, séries, HQs ou até mesmo fofocas. Sempre vi nos livros não apenas uma válvula de escape, mas também uma forma de diversão. Com o tempo, essa paixão se expandiu para o universo dos filmes e das séries. Após anos sem ter com quem compartilhar essas paixões, decidi falar sobre elas na internet.