

Abrir o Festival Olhar de Cinema já é um evento por si só. Fazer isso numa noite em que Curitiba parecia ter sido patrocinada pela Antártida? Aí é teste de resistência emocional. Quem esteve na Ópera de Arame na abertura sabe: o frio era de bater o queixo. Mas foi só começar a sessão de Cloud – Nuvem de Vingança, o novo filme de Kiyoshi Kurosawa, que o termômetro interno de todo mundo subiu. Não por causa de romance, nem de emoção calorosa… mas de pura tensão, ansiedade e aquele tipo de adrenalina que só um bom suspense pode provocar.
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O Cotidiano Cinza de Yoshii: A Vida Antes da Tempestade
Cloud – Nuvem de Vingança não perde tempo com apresentações expositivas. Mas também não tem pressa. Kurosawa te joga direto na rotina medíocre de Ryosuke Yoshii (interpretado de forma brilhante por Masaki Suda), um personagem que poderia ser seu vizinho ou aquele conhecido que vive tentando um esquema novo pra ganhar dinheiro.
Yoshii é o retrato perfeito do “empreendedor de si mesmo”: funcionário de meio período de dia, vendedor online de bugigangas à noite. Tudo isso com uma postura meio blasé, meio robótica, como se estivesse anestesiado pela rotina. A direção aposta em silêncios, planos longos e uma fotografia fria que transforma os apartamentos minúsculos de Tóquio em verdadeiras câmaras de opressão psicológica.


Quando o Reclame Aqui Vira Thriller: A Virada de Cloud – Nuvem de Vingança
Se você acha que Cloud – Nuvem de Vingança é só um drama sobre precarização do trabalho e empreendedorismo forçado… prepare-se pra tomar um tapa. O filme vira a chave de forma abrupta, mas incrivelmente bem orquestrada.
Tudo começa com um conflito banal: clientes insatisfeitos com os produtos vendidos por Yoshii. Algo que, na vida real, terminaria em uma avaliação negativa no marketplace e olhe lá. Mas com Kurosawa, nada é tão simples. Aos poucos, o filme escala de forma quase imperceptível, até que o espectador se dá conta de que está no meio de uma narrativa de perseguição digital com contornos de apocalipse urbano.
Quando a “Cloud” (a tal nuvem de vingança coletiva, que dá nome ao filme) começa a se formar, a tensão vira sufoco. Os clientes lesados, conectados pelas redes sociais, se unem numa caçada tão coordenada quanto assustadora. E o que poderia ser só um linchamento moral online vira uma perseguição física, violenta e imprevisível.
A Estética do Desespero: Como Kurosawa Constrói a Tensão
Visualmente, Cloud – Nuvem de Vingança é um show de contenção. Kurosawa não precisa de trilha sonora bombástica ou de diálogos expositivos pra construir medo. Cada plano é meticulosamente calculado pra te deixar desconfortável. Os sons ambientes, os enquadramentos sufocantes e a edição precisa transformam cada minuto de filme num lembrete de que o pior ainda está por vir.
E quando o terceiro ato chega, com uma explosão de violência quase cômica de tão absurda, é impossível não pensar: “Como eu cheguei até aqui? E por que eu tô gostando tanto disso?”. A resposta, claro, está na maestria de Kurosawa, que te conduz como um rato num labirinto até o colapso final.
A Performance de Masaki Suda: O Robô Que Racha
Falando em colapso, Masaki Suda merece todos os elogios. Seu Yoshii é de uma apatia quase irritante no começo, mas aos poucos vai rachando. A transformação dele, de um jovem indiferente a um homem em estado de puro pânico, é hipnotizante.
Suda entrega nuances de medo, arrogância, negação e desespero num arco que, se fosse mal executado, soaria forçado. Mas aqui, é tudo milimetricamente calculado. Você não precisa gostar de Yoshii pra se importar com ele. E talvez seja justamente essa ambiguidade que faz o personagem funcionar tão bem.
Cloud – Nuvem de Vingança Como Espelho do Capitalismo Tardio
No fundo, Cloud – Nuvem de Vingança é uma crítica feroz ao empreendedorismo tóxico e ao culto da meritocracia digital. Yoshii é só mais um produto de um sistema que empurra jovens a vender qualquer coisa, de qualquer jeito, pra sobreviver.
O filme faz a pergunta que muita gente evita: onde termina o hustle e começa o golpe? O que é apenas um “jeitinho” e o que já é uma exploração sem freios? E, principalmente: o que acontece quando as pessoas, antes só consumidores lesados, decidem tomar a justiça nas próprias mãos?
Kurosawa não entrega respostas fáceis. Ele te obriga a sentar com o desconforto. A entender que a fronteira entre vilão e vítima pode ser muito mais borrada do que a gente gostaria de admitir.
O Terceiro Ato: Um John Wick de Gente Comum (Mas Sem Glamour)
A parte mais divisiva de Cloud – Nuvem de Vingança é, sem dúvida, o último terço do filme. Depois de uma hora de tensão psicológica, a história desaba numa sequência de ação frenética, com direito a tiroteios, perseguições e um nível de violência que beira o grotesco.
É o tipo de escolha que vai fazer muita gente sair da sala falando “o que foi que eu acabei de assistir?”. Mas é justamente esse desequilíbrio que torna o filme memorável. Kurosawa não está interessado em te dar uma narrativa linear ou emocionalmente confortável. Ele quer que você saia com a cabeça cheia de perguntas. Missão cumprida.


O Impacto no Festival e a Recepção em Curitiba
Na saída da sessão, o comentário geral era um só: ninguém esperava aquilo. E isso, num festival como o Olhar de Cinema, é um baita elogio. O público curitibano, já acostumado a abraçar o estranho, reagiu com risos nervosos, olhares confusos e algumas palmas tímidas que, com o tempo, viraram aplausos mais decididos.
O frio continuava lá fora, claro. Mas depois de Cloud – Nuvem de Vingança, parecia um pouco mais fácil encarar o ar gelado. Porque, no fundo, todo mundo saiu com aquela sensação meio incômoda de que, na vida real, talvez a gente também esteja só a um clique de distância de virar protagonista de uma nuvem de vingança digital.
Por Que Cloud – Nuvem de Vingança Vale a Pena
Se você curte cinema que te tira do eixo, que mistura crítica social com suspense psicológico e uma boa dose de humor ácido, Cloud – Nuvem de Vingança é obrigatório. Não é um filme confortável. Não é um filme “pra todo mundo”. Mas é exatamente por isso que ele merece ser visto.
No final das contas, Kiyoshi Kurosawa, aos 69 anos, segue sendo aquele diretor que não tem medo de provocar, de desconstruir gêneros e de brincar com o que a gente entende como moralidade. E em tempos de linchamentos virtuais e justiça de internet, o filme chega com um timing assustadoramente perfeito.
Se a sua vida digital já parece uma panela de pressão… talvez seja melhor assistir e tirar suas próprias conclusões. Só cuidado com o histórico de reclamações. Nunca se sabe quando pode começar a sua própria Cloud.