Este filme foi para minha sessão de terapia – e com gatilhos imensos. Assistir às vulnerabilidades, inseguranças e violências a que a pele preta está exposta é algo pesado demais. E mais pesado ainda é carregar esse ódio, essa raiva e revolta que nunca passa. É preciso uma força que o preto não tem. O preto é frágil também. E é preciso muita força para presenciar aqui, na vida real, a história do povo negro ser diminuída, banalizada e até mesmo destruída diariamente. Num cenário onde a cabeça vive em ansiedade e alerta constante, é impossível não pensar em um “Brasil sem negros”. Já me perguntei ironicamente: “É sério que eles acham possível um Brasil sem negros?”. E assustadoramente, Lázaro Ramos apresenta o seu primeiro filme – Medida Provisória (2022), e mostra que um Brasil distópico, que faz parte do medo do preto no mundo, não é tão impossível assim de existir. 

Medida Provisória se passa em um futuro distópico no Brasil, onde um governo autoritário por meio de uma medida provisória, obriga todos os cidadãos negros – ou de melanina acentuada, como abordado no filme – migrem para a África, na intenção de retornar às suas origens – o que acaba criando caos, protestos e um movimento de resistência clandestino que inspira a nação. O longa é adaptação da peça “Namíbia, Não!”, de Aldri Anunciação, que o diretor e ator Lázaro Ramos roteirizou junto à Lusa Silvestre, além de estrear como Diretor. 

Um prefácio de luta, mas também de beleza – esse é o Brasil do negro

Medida Provisória: Qual o futuro da pele preta? Bem-vindo à um Brasil (não tão) distópico | Crítica por: Alison Henrique | {Des}Construindo o Verbo Por Erick Sant Anna
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Caminhar com uma precisão tão grande pelo dia a dia do preto no Brasil, só seria possível com um diretor preto. Desde a luta nos tribunais, buscando o reconhecimento e direitos do povo negro, até a luta para tomar uma cervejinha em paz no bar, representam com maestria a vida do preto no Brasil. As batalhas travadas no longa trazem à tona uma realidade dura por meio da arte da ficção. Mas além da luta, traz uma beleza grandiosa da vivência negra com suas raízes e, principalmente, na busca pela felicidade que há em viver, amar e sonhar – como qualquer pessoa comum. O único problema aqui é que “A felicidade do branco, é plena. A felicidade do preto, é quase”. 

Crítica racial precisa através do humor

Medida Provisória: Qual o futuro da pele preta? Bem-vindo à um Brasil (não tão) distópico | Crítica por: Alison Henrique | {Des}Construindo o Verbo Por Erick Sant Anna
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É no dia a dia do jornalista André, personagem vivido por Seu Jorge, que temos um viés cômico excelente no longa. Com críticas raciais ácidas e precisas, os diálogos que envolvem Seu Jorge trazem um peso necessário e muito importante para o filme – além de discussões sobre raça, cor e principalmente debates com os famosos “Racista, eu? Jamais!”. Aqui cabe dizer que, ser negro no Brasil, não é nada fácil – e isso Medida Provisória consegue mostrar com veemência, trazendo principalmente os absurdos que tanto presenciamos diariamente, onde uma das únicas opções é rir para não chorar.  

Começa pela democracia racial – e aonde isso vai parar?

Medida Provisória: Qual o futuro da pele preta? Bem-vindo à um Brasil (não tão) distópico | Crítica por: Alison Henrique | {Des}Construindo o Verbo Por Erick Sant Anna
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“Como é que a gente não viu isso? Como é que a gente deixou chegar nesse ponto? Como é que a gente riu disso?”. Medida Provisória coloca em pauta o debate de democracia racial, que ouvimos muito nos tempos atuais em qualquer situação onde diminuem a cor preta para, simplesmente, dar lugar uma igualdade de raças que nunca existiu – a extinção da política de cotas raciais é um bom exemplo. Mas além de levantar a pauta, o longa vai muito além ao se passar em um Brasil distópico onde o negro e afrodescendente, foi diminuído para Melanina Acentuada – um termo que mostra a extinção a nossa raça a partir da ação de cortar as ligações de raça, cultura e descendência. 

Além da diminuição de raça, é assustador presenciar no longa o discurso racista de “Volte para onde você veio”, ainda tristemente presente nos dias de hoje, tomar proporções tão grandes que culminam em um cenário de terror, repressão e dor. A Medida Provisória 1888 é algo não muito longe de acontecer – principalmente se levarmos em conta a tragédia em que o governo brasileiro atual está –, e se compararmos o governo autoritário da distopia de Medida Provisória, com o governo atual, conseguimos encontrar grandes semelhanças – e imensas preocupações sobre o que será do país nos próximos anos, se não mudarmos este cenário nas eleições. Já tirou ou regularizou seu título? O prazo é até 04 de maio. Eu suplico. 

Uma profundidade tamanha na fotografia, trilha sonora, roteiro e direção

Medida Provisória: Qual o futuro da pele preta? Bem-vindo à um Brasil (não tão) distópico | Crítica por: Alison Henrique | {Des}Construindo o Verbo Por Erick Sant Anna
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Até o modo como a câmera passeia pelas cenas, é de uma sensibilidade grandiosa. Com inúmeras referências, a fotografia de Medida Provisória possui um trabalho minucioso e impecável em cada detalhe, valorizando de forma linda a pele preta – além dos tons utilizados na coloração, que foram muito bem escolhidos. Em alguns momentos, temos uma fotografia bastante poética, o que traz um impacto visual de encher os olhos d’água. Já em outros momentos, inclusive na direção de arte, uma pegada bastante futurista, com visuais que me remeteram a Jogos Vorazes.

O que complementa, além da escolha das músicas para trilha sonora que são fortes e cheias de grandes mensagens, é a excelência que o roteiro e a direção confere ao longa. A sequência de acontecimentos pensada com maestria, o desenrolar dos fatos na narrativa, o ritmo em que as cenas acontecem, os pontos de clímax, o trabalho sensível de não animalizar pessoas pretas em sua luta social – a lista de acertos na produção é grande, assim como elogios intermináveis para Lázaro Ramos. Este homem é o maior do Brasil! Digo com tranquilidade. 

Um elenco grandioso para uma história grandiosa

Medida Provisória: Qual o futuro da pele preta? Bem-vindo à um Brasil (não tão) distópico | Crítica por: Alison Henrique | {Des}Construindo o Verbo Por Erick Sant Anna
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E se falamos de profundidade nos aspectos técnicos da obra, temos também uma atuação profunda através de Taís Araújo, que interpreta a médica Capitu no longa; Alfred Enoch (o eterno Dean Thomas, de Harry Potter; e Wes de How to Get Away with Murder) que interpreta o advogado Antônio. Os dois entregam dois protagonistas vorazes para olonga, com uma interpretação cheia de força, impacto e emoção, seja no olhar, na voz, nas expressões – dispensa palavras. A entrega de Seu Jorge, como o jornalista André, também não deixa a desejar – Seu Jorge foi essencial para a narrativa, trazendo um personagem intenso, vivo e com uma personalidade única em todas as cenas, além de ser um poderoso voice off com textos profundos em alguns momentos.

Medida Provisória: Qual o futuro da pele preta? Bem-vindo à um Brasil (não tão) distópico | Crítica por: Alison Henrique | {Des}Construindo o Verbo Por Erick Sant Anna
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Outras atuações de impacto são, certamente, de Adriana Esteves, que interpreta Isabel, a secretária do ministério da devolução. Esteves traz um peso grande à trama, gerando um sentimento de ódio e antipatia enormes em quem assiste o longa. Temos também a interpretação de Renata Sorrah como Dona Izildinha, que traz uma representação impecável do brasileiro branco burguês. Além disso, temos participações gigantes que trazem ainda mais peso ao elenco, com grandes artistas brasileiros: Emicida, Indira Nascimento, Luis Miranda, Tia Má, Flávio Bauraqui, Jessica Ellen, entre outros. 

“Será que a gente nota quando a história está acontecendo?”

Medida Provisória: Qual o futuro da pele preta? Bem-vindo à um Brasil (não tão) distópico | Crítica por: Alison Henrique | {Des}Construindo o Verbo Por Erick Sant Anna
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Medida Provisória é um choque assustador da ficção com a realidade. Além de colocar em debate as relações étnicas, de cor e de raça, o longa transforma uma distopia imagética em uma realidade possível que se conecta com o agora – com um governo que abandona o povo, que age por debaixo dos panos, que extingue a nossa história e reduz às cinzas nossa esperança de um país para todos. Este é um longa que mostra a importância não só de fomentar debates, mas de lutarmos para perpetuar nossa cor e nossa raça na história, para ocuparmos todos os lugares possíveis e impossíveis, para alcançar as oportunidades que nos foram tiradas ou negadas e para, principalmente, extinguirmos governos autoritários e racistas. 

A gente nota quando a história está acontecendo, quando Medida Provisória reúne tanto no elenco quanto na produção,  o maior número de profissionais negros da história do cinema brasileiro. É um filme consciente que faz uma revolução através do entretenimento e da arte, com o papel principal de irritar quem precisa, questionar, informar, fazer refletir e fomentar uma luta racial que está muito longe de terminar. Aqui, fica um desejo que o longa exprime para a nossa história e para nossas vidas: do preto viver sem sentir medo. De viver feliz e em paz sem sofrer violências raciais. Este é um dos legados que devemos proteger para o futuro da pele preta. 

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Confira abaixo o trailer oficial de Medida Provisória (2022), que estreou nos cinemas nesta quinta, 14 de abril de 2022. 

Escrito por

Alison Henrique

Publicitário, Empresário, Dançarino, Cantor, Estudante de Filosofia e, claro, APAIXONADO por Cinema, Arte, Música e Livros. Crítico de Cinema aqui no {Des}Construindo o Verbo com muito sentimento, emoção e boas reflexões pra gente mergulhar nas obras do cinema contemporâneo. Seja Ficção, Drama, Romance, DC, Marvel, Ficção Científica, Bom, Ruim, Médio ou Péssimo. A gente sempre vai se encontrar por aqui pra discutir um pouco sobre tudo. Instagram: @alisonxhenrique.