“Não há nada mais perigoso do que uma mulher que não tem nada a perder.” Esta, com certeza, é uma das frases que mais definem este longa, que inclusive é inspirado no livro autobiográfico “A Número Um“, de Raquel de Oliveira. E é assim que esta obra marca sua força no cinema — através das palavras e da realidade nua e crua que elas representam para nos apresentar a primeira mulher a ser chefe do tráfico na Rocinha. A disrupção acontece de modo tão natural aqui, que nos deparamos com a realidade de um Brasil que não é muito retratada nos cinemas do Brasil, pelo menos não da forma que merece — utilizando a entonação, o vocabulário, a realidade que faz parte do dia a dia na favela. Acredito que, hoje, este é um desafio para obras cinematográficas que procuram maquiar um pouco a realidade, teatralizar demais ou simplesmente escolher um elenco que não condiz com o propósito da obra (falei um pouco disso na crítica da recente estreia de Grande Sertão). Se me permite, vou contar um pouquinho mais abaixo sobre a grandeza de “Bandida: A Número Um” e os motivos para você assisti-lo nos cinemas.
Sinopse
Bandida – A Número Um é um filme nacional de ação dirigido por João Wainer (A Jaula, Pixo) que se passa no Rio de Janeiro da década de 80 e acompanha a história de Rebeca (Maria Bomani), vendida pela avó aos nove anos de idade para o homem que comandava a comunidade da Rocinha. Anos depois, em meio à incessante disputa de território entre os bicheiros e traficantes, as dinâmicas de poder do local passam por mudanças, e Rebeca – agora viúva do traficante-chefe – deve assumir o comando da Rocinha. Assim, se inicia uma eletrizante trajetória de crime, violência, drogas e amor.
A realidade de uma obra potente em uma adaptação de tirar o fôlego
Acredito que o maior feito deste longa é não precisar provar, a todo momento, a masculinidade de um homem envolvido no tráfico. Até mesmo provar sua masculinidade, travar uma luta viril, fazer as piores escolhas narrativas do personagem ou termos um personagem mediano ou cansativo, cheio de piadinhas mal feitas. Em “Bandida: A Número Um” nós simplesmente temos uma narrativa que não dá voltas e nem pestaneja na hora de apresentar os fatos, desenrolar os acontecimentos. Esta é uma característica que deixa o espectador envolvido e concentrado na história, que inclusive, é sensacional.
Mas sem dúvidas, o que mais nos impacta são os inúmeros acontecimentos que geram inúmeros sentimentos e mostram a complexidade da obra — principalmente quando vemos que o filme se inspira em fatos reais e que a personagem existiu de verdade. São momentos revoltantes, absurdos que jamais imaginamos presenciar. A vida real bate na porta e mostra as nuances do crime, as disputas territoriais, a política envolvida ao tratarmos de um chefe do crime e, principalmente, as feridas que o vício cria e o quão rentável este é, tanto para riqueza quanto para o poder.
Todo esse cenário acompanha a direção muito bem realizada de João Wainer — diretor também do longa A Jaula (2022), filme estrelado por Chay Suede que você confere a critica aqui no {Des}. O olhar preciso de João Wainer entrega um longa sensível, bem conduzido em sua narrativa e com momentos de tensão muito profundos e concisos. Junto à isso, a estética que a fotografia traz é outro ponto positivo, evidenciando os momentos com um visual quase nostálgico mas jamais banal, sempre com a sensibilidade que o longa tanto pede.
Toda a força e personalidade da maior bandida do Brasil
“Homem com ego ferido é previsível.” Concordo, Rebeca. E complemento — uma mulher no crime não é apenas uma mulher no crime. A jornada de Rebeca não é nada convencional, previsível ou linear. Isso torna este longa interessantíssimo, apresentando a personalidade imbatível da personagem e também sua complexidade, trazendo diversas camadas que formam sua trajetória e mostrando que uma mulher no tráfico não é bagunça. Entre sua sede por vingança e seu reinado na Rocinha, Rebeca mostra toda a sua inteligência e sagacidade para enfrentar seus inimigos e sua força e potência dentro da comunidade.
A atuação destoante de Jean Amorim — o único conflito no elenco
Este pode ser um dos poucos erros do longa, mas o erro principal de muitas produções brasileiras, principalmente quando temos a retratação da vida nas novelas. É quase um mundo paralelo que mais afasta do que aproxima o espectador da obra, corta a conexão e a identificação com os personagens que a compõem, faz com que este não sinta empatia — um sentimento imprescindível para o impacto de uma obra.
Pará é um personagem de peso no longa, sendo o amor da vida de Rebeca. O grande problema aqui é a interpretação de Jean Amorim, que se conecta perfeitamente com a trama da história, mas deixa a desejar no modo de falar, no ritmo das cenas, na falta de gírias e a roupagem da favela que, além de única, é riquíssima e extremamente específica. O personagem de Pará não convence que cresceu na favela, que não possui estudo ou nenhuma formação. A entonação passada é de alguém que não pertence à Rocinha, não pertence ao lugar em que está. É essa desconexão que me refiro e que atrapalha muito a história. Mesmo com os erros, Jean interpreta com carisma e cuidado seu personagem e até consegue nos emocionar um pouco.
Maria Bomani é fenomenal em seu papel e entrega atuação de carreiras
Maria Bomani é um fenômeno. Já começo enaltecendo sua narração em voice over que dá o tom e conduz a narrativa com maestria. Maria consegue, através de sua voz, nos passar todos os seus sentimentos através de uma linguagem clara, fácil, assertiva e também muito emocionante. Nos mergulhamos de modo profundo em sua jornada e ficamos ali, absorvendo todos os seus sentimentos e emoções ao contar sua história. Nós sentimos sua raiva, sua dor, indignação, sarcasmo, tesão, felicidade, gratidão, entre outros. Normalmente a narração voice over não é algo muito bem recebido no cinema e, muitas vezes, atrapalha a obra e a deixa confusa, desinteressante ou muito pesada ou massante —- temos um exemplo recente com a narração de Caio Blat em Grande Sertão.
Na atuação, Maria Bomani arrebata e nos deixa apaixonados por Rebeca. Maria mostra que não está para brincadeira ao conseguir absorver muito bem as motivações e todos os sentimentos de sua personagem. A impressão que fica é que Maria parece ter vivido cada um daqueles momentos, parece real em sua caracterização, convence facilmente e entrega uma presença absurda nas cenas. É simplesmente chocante ver seu trabalho como atriz ganhando todas as proporções das telonas e um orgulho imenso do seu talento tão bem entregue neste longa. Não adianta, “Bandida: A Número Um” foi feito para Maria Bomani e somente ela poderia ser essa protagonista, não imagino mais ninguém neste papel.
“Bandida: A Número Um” é uma obra transformadora para o cinema nacional — um exemplo a ser seguido
Este é um grande presente para o Brasil que carece de produções que mostrem o potencial tão grande e absurdo do cinema nacional, especialmente quando falamos de adaptações da nossa riquíssima literatura. Neste ponto, nós temos uma obra de grande peso e importância e que retrata uma parte do Brasil que muitos brasileiros não tem conhecimento ou vivência. Viver “Bandida: A Número Um” nos cinemas é uma experiência poderosa pois é uma obra ligada com nossa cultura, nosso cotidiano, vidas reais e pessoas reais que inspiraram cada uma das cenas, sendo agora eternizadas em um longa muito bem pensado, construído, dirigido e executado. É qualidade da arte e sua capacidade de se conectar com a realidade, a vida real e quem nós somos de verdade que pode definir seu sucesso e sua grandiosidade. De fato, este filme consegue isso e já pode ser comemorado como uma excelente obra para o cinema nacional — e que venham mais histórias grandiosas como esta.
Confira abaixo o trailer oficial de Bandida: A Número Um, que estreia nos cinemas nesta quinta-feira, 20 de junho de 2024.