Por mais cancelada que J.K. Rowling esteja (e com razão) é inegável a importância e o papel dela, não só para a literatura, quanto para toda a cultura pop. Embora atualmente não consuma mais nada relacionado a Harry Potter – por motivos óbvios – o universo criado pela autora foi um dos principais responsáveis na minha formação enquanto leitor e é por isso que ao descobrir sobre a existência de “A Arma Escarlate” não poderia deixar de ir atrás saber qual era dessa “extensão” do Universo de Harry Potter.
“A Arma Escarlate”, escrito por Renata Ventura, é um livro que transporta os leitores para um mundo onde a magia se entrelaça com a realidade brasileira, criando uma experiência de leitura cativante, principalmente por nos identificarmos muito mais com a “realidade” descrita no livro.
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Na apresentação do livro, Renata Ventura nos conta que uma fã perguntou a J.K. Rowling se ela não iria escrever uma história sobre uma escola de magia nos Estados Unidos e a autora respondeu: “Não… Mas fique livre para escrever se você quiser” e foi por conta dessa resposta que Renata decidiu dar vida a “Arma Escarlate”.
Um Convite Mágico no Rio de Janeiro
A história começa no morro Dona Marta, no Rio de Janeiro, onde conhecemos Idá Aláàfin, um garoto de 13 anos que vive em condições precárias com sua mãe e avó. Idá, como muitos jovens em comunidades carentes, está constantemente rodeado pela violência e pelo tráfico de drogas.
Em determinado momento Idá acaba tendo problemas como o chefão do morro. Nesse contexto, ele recebe uma carta surpresa, entregue por um pombo – vocês acharam que seria uma coruja no Rio de Janeiro? – com a solução para seus problemas.
Idá foi admitido em “Nossa Senhora do Korkovado”, uma das cinco escolas de magia e bruxaria do Brasil, cada uma servindo uma região diferente devido à grande extensão do país. A princípio Hugo não acredita muito no que a carta está dizendo, mas mesmo assim decidi ir ao endereço descrito na carta para aprender magia o suficiente para acabar conseguir enfrentar aquele que o estava ameaçando.
Esse começo já nos dá uma ideia de como Renata Ventura consegue mesclar o fantástico com o real. Ao contrário de Hogwarts, com suas torres e terrenos extensos, Nossa Senhora do Korkovado é uma escola que enfrenta problemas comuns a muitas escolas públicas brasileiras, como falta de recursos e infraestrutura precária. Esse contraste enriquece a narrativa, trazendo um toque de autenticidade que ressoa com a realidade de muitos leitores.
Em um lugar diferente, onde ninguém o conhece, Idá decide mudar de nome, agora passa a se chamar Hugo Escarlate.
Meu nome é Hugo Escarlate
Hugo Escarlate é um protagonista complexo e realista. Ele não é o herói tradicional; sua impulsividade e desconfiança muitas vezes o colocam em situações difíceis. Essa característica, longe de ser um defeito, o torna mais humano e próximo do leitor. Crescer em um ambiente onde a violência é a norma molda Hugo de uma maneira que é compreensível, mesmo que suas ações nem sempre sejam as mais acertadas.
Além de Hugo, temos os Pixies: Capi, Viny, Caimana e Índio. Este grupo de amigos traz um alívio cômico e uma dose de rebeldia à história. Eles são responsáveis por apresentar Hugo ao mundo mágico, ao mesmo tempo, em que lutam por melhorias na escola. Os Pixies são carismáticos e facilmente se tornam favoritos do leitor, graças à sua determinação e espírito de camaradagem. São eles que apresentam todo mundo bruxo a Hugo e o grupo atua como um diretório acadêmico que luta contra o conselho da escola para que os alunos terem melhores condições de estudo, para a valorização da cultura brasileira no currículo acadêmico, entre várias outras coisas.
Temas Sociais e Magia
Um dos aspectos mais interessantes de “A Arma Escarlate” é como Renata Ventura aborda temas sociais importantes sem que a narrativa perca sua fluidez. Questões como tráfico de drogas, desigualdade social, e até a mitificação da cultura europeia são entrelaçadas na história de forma natural. Esses temas são elementos fundamentais para o desenvolvimento dos personagens e da trama. Nenhum deles são colocados forçadamente, tudo é muito bem mesclado na história e geram grandes momentos de reflexão para o leitor.
Por exemplo, a escola Nossa Senhora do Korkovado, apesar de ser um lugar de magia, reflete muitos dos problemas das escolas públicas brasileiras. Essa realidade crua serve como um espelho para a sociedade, ao mesmo tempo que nos lembra que, mesmo em um mundo mágico, os problemas do mundo real não desaparecem magicamente.
A dualidade de Hugo e a verdadeira “Arma Escarlate”
Embora o universo em que a história se passa seja um “mundo mágico”, com seres fantásticos, o foco central dela é bem mais “pé no chão” e muito próximo a nossa realidade azêmola (não-bruxa). O livro trata bastante da consciência e da natureza humana, não há personagens bons ou ruins, nenhum é cem por cento vilão ou cem porcento herói.
A varinha de Hugo, chamada de “A Arma Escarlate”, é um elemento cheio de simbolismo. Durante a leitura, me peguei questionando o significado do título. Seria a varinha a verdadeira “arma escarlate”? Ou o título se refere a algo mais profundo? Ao final do livro, fica claro que o título é uma referência ao próprio Hugo. Sua varinha é apenas uma ferramenta, enquanto Hugo, com toda a sua complexidade e dualidade, é a verdadeira “arma escarlate”. Ele não é o típico herói bonzinho e inocente, ele é um jovem impulsivo, inconsequente ou como a própria Renata diz: indomável.
Hugo não é apenas um jovem tentando aprender magia; ele está em uma jornada para descobrir quem ele é e como navegar em um mundo que muitas vezes é cruel e injusto.
E aí entram outros pontos muito importantes abordados na história: confiança e responsabilidade. Hugo não confia em ninguém e é aquela típica pessoa “cabeça quente”, o próprio fato dele ter mudado o seu nome é um claro exemplo disso e por ser tão desconfiado ele acaba tomando decisões erradas o tempo todo, não ponderando a responsabilidade das suas ações, o que faz com que, muitas vezes, nós leitores tenhamos vontade de socá-lo, porque sabemos que aquelas decisões irão trazer consequências graves para ele.
Essa dualidade do Hugo, só deixa claro o quão Renata conseguiu construir um personagem único e bem desenvolvido. Mesmo ele tendo um caráter um pouco duvidoso, é difícil não se apegar a ele e torcer para que as coisas deem certo. Durante a leitura conseguimos entender o porquê dele ser assim e bom, Hugo é um garoto que durante toda sua vida só conheceu a violência e quem só recebeu violência, dificilmente vai ser capaz oferecer algo diferente. No final das contas, Hugo é apenas humano.
Referências e Conexões com Outras Obras
É inegável que “A Arma Escarlate” possui várias semelhanças a saga criada pela J.K. Rowling, e é possível afirmar que a história se passa não apenas no mesmo universo de Harry Potter, mas também em diversas outras sagas famosas, tais como “Crepúsculo”. Perceber essas referências ao longo do enredo torna a experiência de leitura muito mais divertida e nos ajuda a nos situarmos em qual momento da linha do tempo de Harry Potter a narrativa se desenrola.
Mas isso não quer dizer que Hugo seja uma espécie de Harry Potter da favela, ou a Nossa Senhora do Korkovado seja uma Hogwarts brasileira, ou mesmo que a história criada pela Renata seja uma imitação abrasileirada da obra da Rowling. O que Renata Ventura fez foi pegar um universo que já amávamos e mesclá-lo com a nossa riquíssima cultura brasileira de uma forma genial e criativa.
Essas referências são sutis e funcionam como pequenos presentes para os fãs de literatura fantástica, criando uma conexão entre o universo de Renata Ventura e outras histórias amadas pelos leitores. Esse diálogo intertextual não só enriquece a narrativa, mas também situa a história em um contexto mais amplo, permitindo aos leitores identificar pontos de familiaridade enquanto exploram um novo mundo.
A Magia da Cultura Brasileira
Um dos pontos mais fortes de “A Arma Escarlate” é como Renata Ventura incorpora elementos da cultura brasileira de maneira orgânica e vibrante. Desde o uso de pombos para entregar cartas até a existência de cinco escolas de magia para acomodar a vastidão do Brasil, cada detalhe é cuidadosamente pensado para refletir a riqueza cultural do país.
Essa abordagem torna a leitura não só uma viagem pelo mundo mágico, mas também uma celebração da cultura brasileira. Para quem cresceu em um contexto semelhante, há um sentimento de familiaridade e orgulho em ver elementos de sua própria cultura representados de maneira tão criativa e respeitosa.
Reflexões Finais
“A Arma Escarlate” é mais do que uma simples história de magia; é um convite para refletir sobre a sociedade e os desafios que enfrentamos. Renata Ventura criou um universo que, embora fantástico, está profundamente enraizado na realidade brasileira. Seus personagens são complexos e humanos, suas tramas são envolventes e suas mensagens são poderosas.
Para aqueles que, como eu, cresceram com Harry Potter, mas não conseguem mais consumir a obra por conta das atrocidades que a J.K. Rowling têm feito com a comunidade trans. “A Arma Escarlate” é uma excelente escolha. A obra de Renata Ventura oferece uma perspectiva nova e emocionante, mesclando o familiar com o novo de maneira magistral.
Se você está em busca de uma leitura que combina aventura, magia e uma reflexão profunda sobre a realidade, “A Arma Escarlate” é o livro perfeito. Magia, folclore brasileiro, desenvolvimento de personagem, história intrigante… Temos tudo aqui. Prepare-se para virar as páginas e se perder no universo mágico e brasileiro que Renata Ventura habilmente criou.
Sobre Renata Ventura
Renata Ventura, nasceu no Rio de Janeiro, é jornalista e escritora de ficção. Conseguiu realizar o seu grande sonho de publicar uma série de livros em 2011 dando vida “A Arma Escarlate”, na qual trabalho durante cerca de 5 anos.