

Quantas vezes você já teve certeza absoluta de que estava do lado certo da história, só para descobrir, anos depois, que nada era tão simples assim? Que o vilão tinha suas razões, que a heroína tropeçava na própria vaidade, e que ninguém sai ileso quando o mundo começa a desmoronar. Wicked: Parte 2 chega justamente nesse ponto de maturidade cinzenta, contrastando sem pudor com o otimismo quase juvenil da primeira parte.
Se o primeiro filme subia pelas paredes da grandiosidade e entregava um musical cheio de energia, este aqui prefere a pergunta incômoda. Ele quer saber o que acontece depois que você escolhe um lado e descobre que essa escolha não te protege de nada. Aqui, crescer tem consequências, e nenhuma delas é bonita.
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O Retorno a Oz, Um Reino Que Já Não Esconde as Rachaduras
Voltamos exatamente ao ponto onde a história parou. Elphaba agora é oficialmente o monstro conveniente de Oz, o saco de pancadas perfeito para encobrir todo tipo de erro político. Exilada na floresta, carregando o rótulo de Bruxa Má do Oeste, ela vive do outro lado do espelho, enquanto Glinda desfruta das luzes da Cidade das Esmeraldas como o ícone máximo da Bondade.
Essa Bondade, aliás, vem com juros altos. Glinda é amada, reverenciada e usada como uma espécie de cortina reluzente para um governo que já perdeu qualquer traço de escrúpulo. O filme cuida de mostrar, sem pressa, que manter essa fachada custa caro, e que Glinda sabe disso melhor do que gostaria.
A narrativa engata quando ela tenta, com aquele idealismo que ninguém tem mais idade para sustentar, aproximar Elphaba do Mágico. E, como acontece com quase toda tentativa de mediar conflito entre gente poderosa e alguém que se recusa a abaixar a cabeça, a situação degringola. A famosa garota do Kansas surge no meio disso tudo só como catalisadora, um ponto de virada que complica o que já estava tenso. Nada além disso, e ainda bem. O filme acerta ao não tratá-la como protagonista dentro de uma história que não é dela. A ausência do rosto, inclusive, funciona como lembrete de sua função narrativa, não como personagem completa.
Longe da Universidade Shiz, da fofoca estudantil e do brilho juvenil, a história respira um ar mais pesado. As bruxas crescem porque não tem alternativa, e Oz se transforma num território onde escolhas pessoais viram declarações políticas, com tudo de perigoso que isso implica.


Elphaba e a certeza de saber quem é
A segunda parte de Wicked é mais melancólica e menos interessada em números que gritam Broadway. Aqui, o foco está no custo das decisões. As músicas não têm a mesma força explosiva do primeiro filme, mas acompanham um enredo que prefere a cicatriz ao espetáculo.
O que mais chama atenção é como a história reenquadra Elphaba. Depois de ser demonizada em praça pública, ela age movida por amor e lealdade, não por desejo de redenção. O mundo a condenou, e ela segue adiante com uma dignidade que incomoda justamente porque desmonta a narrativa oficial. Elphaba continua sendo o centro moral, mas agora sem precisar provar nada. Ela já sabe quem é.
Glinda assume um protagonismo nenhum pouco cor de rosa
E é justamente por isso que Wicked: Parte 2 é o filme de Glinda. A personagem que antes vivia no território da superficialidade, quase sempre tratada como alívio cômico de peruca impecável, aqui enfrenta o próprio reflexo pela primeira vez.
Glinda tenta agradar, tenta mediar, tenta ser justa, tenta preservar sua imagem pública. O roteiro a coloca diante de uma encruzilhada cada vez mais estreita, onde cada escolha sacrifica um pedaço de si. E, embora às vezes o filme pegue pesado na necessidade de nos lembrar de que ela continua boa, suas falhas são o que mais a humanizam. É desconfortável ver alguém tão acostumada ao amor das massas descobrir que esse amor exige silêncio, submissão e uma dose generosa de autoengano.
Ela é quem realmente vive o processo de perda da inocência. Elphaba já fez isso no primeiro filme. Agora é a vez da outra metade da dupla encarar o vazio que sobra quando você percebe que o sistema não quer que você seja boa, quer só que você obedeça.


Erivo e Grande, seguem entregando tudo
Cynthia Erivo retorna ainda mais poderosa. Sua Elphaba é uma presença quase elétrica, carregada de dor, coragem e convicção. Ariana Grande, por sua vez, surpreende ao abraçar a fragilidade moral de Glinda com mais profundidade do que o primeiro filme permitiu. Juntas, elas constroem um elo muito mais intenso do que qualquer tentativa de triângulo amoroso que o filme insiste em inserir.
Aliás, o romance com Fiyero continua sendo a parte menos convincente, quase um lembrete de que nem tudo precisa estar ali. O que importa, e o filme sabe disso, é a amizade que as duas tentam desesperadamente manter apesar de tudo.
Uma Oz Que Perdeu o Brilho
Visualmente, o filme entrega um Oz mais pálido, quase desgastado, e isso faz sentido com o clima. Mas às vezes a direção parece tímida demais para confiar no poder visual do próprio mundo. Os figurinos e cenários continuam incríveis, só que menos celebrados pela câmera.
Quanto à Dorothy, ela aparece exatamente como deve: uma presença impactante que não rouba a cena. Seu rosto nunca mostrado é a escolha certa, reforçando que ela não é protagonista dessa história. Ela é só uma peça importante num jogo maior e mais político, e ponto.
Temas Demais, Tempo de Menos
O filme quer falar de tudo, desde propaganda política até direitos sendo corroídos pelas sombras do palácio. Algumas ideias funcionam, outras caem no esquecimento. Há um paralelo óbvio com a realidade, especialmente na forma como o poder manipula a narrativa pública, mas o filme nem sempre puxa essa linha até o fim.
Ainda assim, o segundo ato brilha com reviravoltas fortes e encontra um espaço quase inesperado para um humor ácido que só aparece de verdade quando Jeff Goldblum entra com Wonderful. A música, do jeito que ele interpreta, vira praticamente um comentário editorial travestido de número musical, e o timing é perfeito. Goldblum canta sobre como é fácil manipular uma população cansada e desesperada, e faz isso com um sarcasmo tão afiado que chega a doer. É impossível não pensar no mundo lá fora, na política que a gente consome por obrigação, nos discursos prontos que se repetem até virar ruído. Essa música, aliás, funciona como uma ponte direta entre Oz e qualquer telejornal recente. Não é sutil, e justamente por isso é tão boa.


O curioso é que o filme tenta expandir esse comentário social com várias peças da mitologia clássica, e algumas são realmente espertas. As explicações para o Homem de Lata, o Espantalho e o Leão surgirem da forma que surgem são engenhosas e muito mais trágicas do que o público casual talvez esperasse. O mesmo vale para a origem dos Sapatos Vermelhos de Rubi, que aqui ganham uma motivação emocional inesperada, profundamente conectada a Elphaba. São ótimas ideias, mas o filme parece um pouco ansioso para apresentá-las, quase como quem quer mostrar que pensou em tudo, só que não tem tempo para desenvolver. Depois que esses elementos aparecem, eles acabam escorregando para o fundo da trama. O impacto existe, mas o aprofundamento não vem. É como se fôssemos apresentados a um mapa riquíssimo e, logo depois, alguém virasse a página correndo.
O preço de ser boa de verdade
Wicked: Parte 2 não entrega respostas fáceis. Ele tropeça, se dispersa, tenta abraçar temas demais, mas é honesto no que realmente importa, a relação entre Elphaba e Glinda e o preço que as duas pagam para existir num mundo que prefere rótulos a verdades.
O título carrega o duplo sentido, para sempre e para o bem, e o filme cutuca justamente a ferida entre esses dois extremos. Porque às vezes você acha que está fazendo o que é certo e, quando olha de novo, percebe que virou parte do problema.
A pergunta que fica ecoando depois do fim não é se as bruxas são boas ou más, mas se existe algum caminho possível quando você finalmente entende que escolheu errado. E, pior, se ainda dá tempo de escolher de novo.
Assista o trailer de Wicked: Parte 2
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