Em ‘Salão de Baile’ (direção de Juru e Vitã), vemos uma produção que mescla uma espécie de “teatro” para contar a história da cena Ballroom, originada nos Estados Unidos, ao mesmo tempo que documenta como segue a adaptação desse movimento vibrante e politicamente carregado no Rio de Janeiro.
Calma, o título da resenha não é um mero clickbait, é que o filme (em questão de montagem, edição e desenvolvimento de roteiro) facilmente poderia (e deveria) ser uma série documental daquele serviço de streaming brasileiro super conhecido. O fato de serem rápidos 94 minutos não torna a experiência menos *CUNT, afinal, a produção ainda segue entregando muito na combinação deliciosa de performances de dança, como voguing e batekoo, com depoimentos francos, tocantes e também repletos de um bom **SHADE, mas fica aquele sentimento de que teria muito mais para ser contado, se tivessem o devido tempo e investimento, sabe?
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Didatismo e emoção ao apresentar termos, categorias e dinâmicas da BALLROOM
É uma mistura divertida e envolvente de didatismo e emoção ao apresentar termos, categorias e dinâmicas da ballroom de maneira acessível ao público geral, enquanto ressalta os contextos políticos e sociais que moldam essa cultura.
No aspecto didático, ele desmistifica a ballroom de forma inclusiva, apresentando elementos-chave como as ***HOUSES e suas dinâmicas internas, as categorias competitivas e a história do voguing. Tudo é inserido de forma fluida, sem parecer condescendente. A explicação vem do lugar de quem pertence à cena, sem transformar esse universo em algo exótico ou distante. É como uma conversa entre iguais, um convite para entrar nesse mundo com (muito) respeito e curiosidade.
Em termos emocionais, o documentário vai além da superfície. Ele entrega a história viva da ballroom por meio de corpos e vozes de pessoas que realmente fazem parte dela. É impossível não sentir algo quando escutamos relatos de rejeição transformada em autovalorização ou quando vemos alguém desfilar no palco com a força de quem está afirmando: “Eu existo!”. Cada depoimento, cada batalha, cada pose carrega uma carga de sobrevivência e resistência que transcende o espetáculo.
Preconceito dentro da própria cena e a resistência contra a exclusão
Além de capturar a energia e a estética dos bailes, o documentário aborda questões como preconceito dentro da própria cena e a resistência contra a exclusão de pessoas trans não binárias, por exemplo. É uma obra que celebra identidades marginalizadas e conecta o público com os dilemas reais enfrentados pela comunidade queer e as diversas identidades transgênero, como: a luta por aceitação; o desejo de encontrar uma família; a busca por visibilidade; o reconhecimento enquanto parte da cultura. Demonstra a alegria e a liberdade da ballroom enquanto reflete sobre a dor e a exclusão que a tornam necessária. Nesse sentido, principalmente para quem é LGBTQIAPN+ e prete, ele não é apenas uma janela para o universo ballroom, é um espelho onde é possível reconhecer nossos próprios desafios e conquistas.
É essa junção de aprendizado e emoção que faz de ‘Salão de Baile’ mais do que um documentário e te deixa com o “gostinho de quero mais”. É uma comemoração e, ao mesmo tempo, uma declaração política, um manifesto que nossa arte, nossas histórias e nossas identidades merecem existir e florescer.
Juru e Vitã trazem resistência cultural e identidade LGBTQIAPN+ em suas obras
Juru e Vitã são cineastas brasileires que têm se destacado por abordar temas relacionados à diversidade, resistência cultural e identidade LGBTQIAPN+ em suas obras.
Juru é pura potência criativa, artista-pesquisadore que dança entre várias linguagens: corpo, performance, cinema e, obviamente, a cena queer. Sua vibe está em explorar como o corpo comunica histórias, quebrar moldes de gênero e mergulhar de cabeça no universo ballroom, onde voguing é tanto arte quanto manifesto. Juru não só vive a cena, mas também reflete sobre ela academicamente – se formou em Estudos Contemporâneos das Artes pela UFF e tem doutorado em artes pela UERJ.
Vitã é aquele tipo de cineasta que junta sensibilidade e militância no que faz. Com mais de 15 anos no corre do audiovisual, ela é diretora, roteirista e pesquisadora. Mestre em Cinema e Audiovisual pela UFF, já trabalhou em projetos que atravessaram fronteiras, criando para plataformas como Globoplay e Globosat+. Como fotógrafa independente da cena e Imperatriz da icônica Legendary House of Lauren, Vitã trouxe uma conexão absurda para ‘Salão de Baile’. É a energia de quem conhece o palco, os laços e o significado de cada pose.
Ambos botaram todo o coração e experiência na criação desse filme, transformando suas vivências na cena e suas pesquisas em um retrato que pulsa com a essência da ballroom no Rio de Janeiro. Aqui vai o melhor: a produção foi feita com uma equipe que é, em sua maioria, formada por pessoas da própria cena ballroom. Isso deu ao documentário uma autenticidade que só quem vive essa realidade pode trazer — é uma visão de dentro pra dentro, cheia de respeito, verdade e alma.
Category is… bring it to the RUNWAY!
‘Salão de Baile: This is Ballroom’ é daqueles filmes que já chega ocupando espaço e fazendo barulho. Já participou de diversos festivais nacionais e internacionais. Sua 1ª apresentação ao “mundo” foi em março de 2024, no CPH:DOX (Festival Internacional de Documentários de Copenhague, na Dinamarca), e desde então tem rodado o mundo, sendo exibido em mais de 15 países.
O documentário também vem acumulando prêmios! Ganhou Melhor Montagem e uma Menção Honrosa no Prêmio Félix, no Festival do Rio. Levou o Prêmio do Público no Queer Porto (em Portugal), Melhor Documentário no Oslo/Fusion (Noruega) e o Prêmio Diversidade no Afrika Film Festival (Alemanha). No Brasil, o filme não ficou por menos. Brilhou no Festival do Rio, fechou com chave de ouro o 13º Olhar de Cinema e foi o grande vencedor do Coelho de Ouro no Festival Mix Brasil, levando o prêmio de Melhor Longa Brasileiro.
Agora, segura essa: a estreia nos cinemas brasileiros está marcada para o dia 5 de dezembro de 2024. É só preparar o look, porque vai ser bapho! Confira o trailer abaixo:
Assista ao trailer de Salão de Baile: This is Ballroom
*CUNT – Termo que também é um palavrão na língua inglesa, mas que foi ressignificado na cena ballroom, usado para especificar feminilidade, presença e atitude.
**SHADE – Termo que se refere a uma forma de insultar ou criticar algo ou alguém de maneira indireta, elegante e espirituosa, muitas vezes com toque de humor e ironia. Não é um simples ataque, é uma arte de se expressar com criatividade dentro do espírito competitivo da cena ballroom.
***HOUSES – As houses (casas) são o coração da cultura ballroom. Elas funcionam como famílias escolhidas, oferecendo acolhimento, suporte e um senso de pertencimento para pessoas LGBTQIA+, especialmente para aquelas que enfrentam rejeição ou exclusão de suas famílias biológicas. Criadas inicialmente por pessoas negras e latinas LGBTQIA+, as houses continuam sendo um espaço de resistência, celebração e união.