Para aqueles na casa dos 30 anos, como eu, talvez lembrem das séries transmitidas no SBT na era pré-streaming. Séries como “Cold Case”, “Kyle XY”, “Smallville” foram algumas das mais icônicas. Você provavelmente tem boas lembranças dessa época, embrora algumas vezes eles paravam de exibir alguns programas sem mais nem menos – bons tempos. Assim, meu amor por séries iniciou e foi através do SBT que conheci minha série favorita e primeira obsessão: “Veronica Mars”.
Com um contexto muito semelhante à trama de “I Saw the TV Glow”, o novo drama-terror da queridinha A24 se desenrola. Mas não se engane, o filme não vai tratar dos terrores da dependência da tecnologia, inteligencia artificial a lá “Black Mirror”, de certa forma a proposta aqui é muito mais semelhante às séries de terror direcionadas para o público infanto-juvenil como “Goosebumps” e “Are You Afraid of The Dark’, que lidavam com medos mais “primitivos”, mas de forma mais madura.
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Com um olhar um pouco mais superficial dá a entender que “I Saw The TV Glow” trata das conexões que criamos com a mídia — as relações poderosas, mas unilaterais, que temos com nossos programas e músicas favoritos, especialmente na adolescência e como essas “obsessões” e fantasias podem ser reconfortantes, mas também perigosamente delrantes, o que gera um ponto conexão emocional com o público, mas “I Saw The TV Glow” também gera muitas outras reflexões, principalmente se você for uma pessoa Queer.
A sensação de pertencer
A história gira em torno de dois estudantes que frequentam a Void High School – VHS entenderam a sacada? Eles se conhecem durante as eleições de 1996. Owen, um garoto tímido e introvertido do sétimo ano, vê Maddy, do nono ano, lendo um guia de episódios da série “The Pink Opaque”. Intrigado ele cria coragem para perguntar a ela sobre. Ela admite sua paixão pela série, mostra parte do seu guia de episódios a ele e o encoraja a assistir. Mas o programa só vai ao ar depois do horário que Owen pode ficar acordado. Maddy propõe que Owen convença seus pais de que ele está hospedado na casa de um amigo para ir até o porão dela e participar do ritual semanal que ela e uma amiga tinham de assistir os episódios juntas.
Depois daquela noite, Owen parece não conseguir falar com Maddy, preso por seus sentimentos de alteridade e ansiedade social. No entanto, quando ele finalmente confessa que não conseguiu assistir ao programa desde a noite em que ela o apresentou, Maddy começa a deixar gravações em vídeo de cada episódio com notas manuscritas para ele na sala escura da escola e com isso os dois começam a partilhar a obsessão pela série.
Nós somos o “The Pink Opaque”
“The Pink Opaque” a série em que os dois “amigos” estão obcecados é uma fantasia adolescente com ar meio “Buffy – A caça-vampiros” – que é referenciada durante o filme – que conta a história de duas amigas que têm uma ligação psíquica, investigam casos paranormais e lutam contra o vilão Mr. Melancholy. Quando o show é cancelado abruptamente após um momento de angústia significativo e perturbador, Maddy desaparece.
Um agora adulto Owen (interpretado por Justice Smith) enfrenta mudanças tumultuadas em sua vida que o forçam a adotar os padrões sociais para uma vida adulta aceitável — um lar, uma família e um trabalho enfadonho e sugador de almas. A identidade de Owen desaparece gradualmente à medida que ele reprime sua verdadeira natureza e vive uma vida de desespero silencioso.
Ele segue essa vida no “piloto automático” até que Maddy reaparece misteriosamente anos depois e revela um segredo chocante que o faz questionar a natureza de sua realidade e onde ele se encaixa neste mundo. Ela conta a ele uma história perturbadora sobre como ficou presa dentro do “mundo do show” depois que as memórias de “The Pink Opaque” começaram a se misturar com a realidade em sua mente, sugerindo que suas próprias identidades estão ligadas às suas duas heroína.
A descoberta de si mesmo
Jane Schoenbrun, que assume a direção do filme, é uma pessoa não-binária. Quando temos essa informação, fica claro que “I Saw the TV Glow” é uma alegoria para identidade de gênero, especificamente o momento de “sair do armário” para uma pessoa trans. Como Schoenbrun discutiu na maioria das entrevistas de promoção do filme, o momento do entendimento enquanto pessoa trans inspirou o filme em parte e, embora ser transgênero não esteja explicitamente declarado no roteiro, o filme sugere isso de forma bem clara.
A direção de Jane Schoenbrun é poética, etérea, te conduz para um susto sombrio sobre o que acontece quando você passa pela vida com segurança no piloto automático, evitando como deveria experimentar a existência até que seja tarde demais para alterar. Embora seja muito bem feito, “I Saw the TV Glow” provavelmente pode confundir o grande público. Schoenbrun têm fortes influências por filmes de David Lynch e David Cronenberg.
“I Saw the TV Glow” tem uma direção de arte e fotografia meticulosamente elaborada, o neon dá uma beleza com um toque de surrealismo que é de brilhar os olhos. Nas cenas internas, os rostos dos personagens são iluminados pelo brilho sobrenatural de seus aparelhos de suas TVs de tubo; nas cenas externa, os grafites de giz que cobrem as ruas parecem quase luminosos, iluminando o caminho de Owen enquanto ele atravessa as ruas. O roxo, muito presente, representa o sonho, ilusão e fantasia; é uma cor associada com a energia sobrenatural do universo, do cosmos e a espiritualidade como um todo. Mas também, por ser a mistura do vermelho com o azul, ele também pode transmitir sentimentos opostos, como coragem e medo. O que diz muito sobre a jornada de Owen e Maddy e até nos faz questionar o que é real e o que não é.
A vida no piloto automatico
Enquanto Maddy, desde o início do relacionamento, deixa claro que ela se sente atraída por garotas, Owen prefere caminhar como um sonâmbulo por uma vida segura e sem intercorrências, em vez de correr riscos e começar de novo como seu eu mais autêntico. Owen é diferente de uma forma que ele nunca se dá permissão para explorar. Ele não olha as pessoas nos olhos. Em um trecho de cena, ele se permite um momento de alegria silenciosa ao experimentar um dos vestidos de gola alta de Maddie. Ele cobre o peito peludo o mais rápido possível com uma camiseta cinza de manga curta e, em trajes masculinos, prefere roupas grandes que caem como vestidos. Mais tarde, ele se limita aos uniformes de trabalho e a sair com seus colegas de trabalho malvados.
Apenas uma vez, ele se aventura com Maddie em um local repleto de possíveis novas amizades, mas nunca vê isso como uma opção sem ela. Nessa cena a trilha sonora tem um papel fundamental, no palco algumas bandas tocam músicas que refletem esse momento e os gritos dos cantores são presságios da raiva reprimida dentro de Owen.
Owen atua como um narrador não confiável, quebrando a quarta parede algumas vezes ao longo do filme. Durante um desses momentos, já adulto, ele é mais dissimulado quando se dirige à câmera: “Tenho uma família e os amo muito”, enquanto segura uma caixa de uma TV. Nunca vemos essa família, e parece uma mentira, a menos que a nova e elegante TV seja dita família. Se for verdade, Schoenbrun nunca os mostra e apenas retrata o que é verdadeiramente importante para Owen. Ele se tornou como seu pai, deitado de queixo caído em sua sala, com a televisão o encantando e solado de qualquer pessoa de sua casa. Ele rejeita Maddie para ficar sozinho, incapaz de imaginar viver uma vida que possa corresponder à sua imaginação.
Shoenbrun não sacrificou o sentimento íntimo e feito à mão que seu trabalho invoca. O filme está repleto de imagens misteriosas, belas e perturbadoras. As conversas são abafadas, o diálogo repleto de exposição soa como adolescentes ansiosos para compartilhar suas afirmações e sentimentos, mesmo que seja estranho.
“I Saw the TV Glow” é menos um filme de terror e mais uma reflexão sobre como transmitir a crise existencial que toneladas de pessoas sentem em seus cantos isolados do mundo que não têm lugar para quem é diferente, não conseguem seguir as normas, se sentem sufocados e nunca se sentem em casa com a família ou na cidade natal, então tiveram que fugir ou ficar e morrer lentamente.
Justice Smith e Brigette Lundy-Paine entregam TUDO
Ainda assim, todo essa cinematografia e reflexões que profundas que o “I Saw The TV Glow” traz, não teriam o mesmo efeito se as performances do filme fossem abaixo da média. O desempenho de Smith é notável. Da voz ao comportamento, ele se transforma, desaparecendo completamente em Owen. O personagem se torna particularmente emocionante no final do filme, conforme se torna cada vez mais retraído com o tempo e acaba “explodindo”. Já Lundy-Paine retrata com precisão a determinação de Maddie e seu compromisso com suas convicções adolescentes. Ela fornece um contraponto convincente ao trabalho moderado de Owen, de Smith, especialmente no final do filme em um monólogo hipnótico.
O fato de ambos os atores principais fazerem parte da comunidade LGBTQIAP+ sem dúvida contribui para a autenticidade que ambos trazem aos seus papéis; eles incorporam esses personagens a tal ponto que você quase pode esquecer que o que está assistindo a um filme de ficção, sucumbindo assim ao mesmo perigo que eles correm na tela.
Para todos aqueles que acharam que não perteciam
Mesmo que você não tenha passado por questões de identidade de gênero, “I Saw The TV Glow” conversa com qualquer pessoa que lamentou a passagem do tempo, se sentiu sufocada na vida ou teve alguma série, filme ou banda favorita como refúgio, se esse é o seu caso, provavelmente encontrará muito em que pensar depois que o filme terminar. Embora seja emocionante experimentar o toque pessoal que Schoenbrun imbuiu, o filme mantém uma acessibilidade temática que deve conectar-se com aquelas pessoas que são fãs das obras da A24.
“I Saw the TV Glow” é um filme que mistura nostalgia, terror surrealista e uma reflexão sobre identidade. A direção poética de Jane Schoenbrun e as performances autênticas de Justice Smith e Lundy-Paine tornam esta uma obra memorável. Mesmo que possa confundir alguns, o filme tráz uma narrativa emocionalmente ressonante que vale a pena assistir.