Qual a linha que separa a memória da obsessão? Onde o passado encontra o presente, não como uma recordação afetuosa, mas como uma âncora que puxa para o fundo? Essas perguntas, que talvez já tenham tirado o sono de algum desavisado que cismou de revirar um baú de fotografias antigas, parecem ser o motor por trás de “Retrato de um Certo Oriente”, o filme que abriu com pompa e circunstância o Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba deste ano na imponente Ópera de Arame. Um cenário à altura para uma obra que, se não é um blockbuster com fogos de artifício, promete uma viagem e tanto para quem ainda se permite sentir e pensar.

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Onde o Líbano Encontra a Amazônia: Uma Carta de Embarque Inusitada

Marcelo Gomes, um sujeito que já provou seu talento em filmes como “Paloma” e “Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar”, se aventura agora em uma adaptação do aclamado romance de Milton Hatoum. E, convenhamos, adaptar Hatoum não é para qualquer um. O cara escreve com uma densidade que faria muita gente chorar no banho. Mas Gomes, corajoso que só ele, pegou a história dos irmãos libaneses Emilie e Emir e a jogou em um caldeirão de imigração, paixão e preconceito.

A premissa, por si só, já é um convite: dois católicos do Líbano de 1949, fugindo de conflitos sociopolíticos, embarcam para o Brasil. No meio do caminho, Emilie se joga nos braços de Omar, um comerciante muçulmano, e aí a coisa desanda. Emir, o irmão, que já não batia muito bem das ideias, surta de ciúme, mistura religião com possessividade e arma um barraco homérico. O resultado? Um acidente, uma parada forçada em uma aldeia indígena no meio da selva amazônica e a busca por um curandeiro. Daí em diante, a decisão de Emilie, que poderia ser de qualquer um de nós quando a vida te força a escolher entre a cruz e a espada, desencadeia uma série de consequências trágicas. É um prato cheio para quem gosta de drama que não apela para a faca entre os dentes, mas que te faz apertar os olhos no escuro.

A Estética da Alma em Tons de Cinza

Primeiro de tudo, vamos falar do elefante na sala, ou melhor, da ausência de cores nela: a fotografia em preto e branco. Ah, o preto e branco! Meus caros, se você é daqueles que só vê graça em imagem colorida e com mil filtros do Instagram, prepare-se para ser desarmado. Pierre de Kerchove, o diretor de fotografia, é um artista que usa os tons de cinza para pintar uma atmosfera de mistério que é quase um personagem à parte. A Amazônia, essa imensidão verde que a gente conhece de cor e salteado, vira um cenário etéreo, sem a exuberância que beira o exotismo, mas com uma beleza introspectiva que te puxa para dentro da história. É um preto e branco que não é só bonito; é funcional, ele evoca a memória, a saudade, a cicatriz. E o formato 4×3? Claustrofóbico na medida certa durante a travessia marítima, nos faz sentir o mesmo desconforto e o confinamento dos personagens. Uma sacada genial para quem entende que cinema é também sobre sentir a textura das imagens.

E o som? Ah, o som! Ele não é só um coadjuvante; é quase uma voz narrando os acontecimentos. Os rangidos do navio, os sons da floresta, tudo se mistura à trilha musical de forma a te imergir de corpo e alma naquela jornada. É uma imersão sensorial que raramente vemos por aí, onde cada ruído tem seu propósito e te puxa ainda mais para a pele dos personagens.

Os temas? “Retrato de um Certo Oriente” é um banquete para quem gosta de mastigar ideias. Alteridade, tolerância, preconceito, paixão, memória… Tudo isso se entrelaça em uma tapeçaria rica que celebra a mistura, a troca entre culturas. Em um mundo onde o discurso de ódio e intolerância parece ganhar cada vez mais palco, um filme que propõe a convivência pacífica entre diferentes religiões e culturas é um sopro de ar fresco. As atuações, especialmente de Wafa’a Celine Halawi como Emilie, são daquelas que te convencem, que te fazem acreditar na dor e na esperança dos imigrantes. Ela carrega o peso da personagem com uma entrega e autenticidade que são dignas de aplauso.

As Rachaduras no Mármore: Nem Tudo é Perfeito no Oriente

Mas, como a vida não é um comercial de margarina e nenhuma obra é unânime, “Retrato de um Certo Oriente” também tem seus tropeços. E, para um crítico chato como eu, vale a pena pontuar. A figura de Emir, o irmão problemático, que começa com um potencial dramático absurdo, se esvazia na segunda metade do filme. Ele se torna mais um “ranzinza genérico” do que o personagem complexo que poderia ser. Isso, por sua vez, enfraquece a dinâmica entre os irmãos e o conflito familiar que deveria ser o coração pulsante da trama. É como se o roteiro, em algum momento, tivesse desistido de aprofundar as camadas daquela relação doentia que beira o incesto e a inadequação. Uma pena.

Outro ponto que me fez erguer a sobrancelha é o ritmo. Sim, a estética é linda, o controle visual é impecável, mas essa beleza toda, paradoxalmente, acaba abrandando a contundência dramática. A gente contempla mais do que sente profundamente. É quase como olhar uma pintura maravilhosa, mas não ser capaz de mergulhar nela. Eu, que sou um eterno fã de um bom chacoalhão emocional, senti falta de umas espetadas no coração, de um nó na garganta que fizesse a gente sair da sala com a alma um pouco mais bagunçada.

E para os puristas do livro de Hatoum, preparem-se: a adaptação faz algumas escolhas que se afastam da estrutura original. A narrativa, que no romance é um ir e vir no tempo, no filme se torna linear. Não que isso seja um problema em si, mas pode frustrar quem esperava uma fidelidade maior à genialidade literária do autor. Mas, como sempre digo, cinema é cinema, livro é livro, e a arte da adaptação está justamente em encontrar uma nova voz.


Memória, Migração e a Cura Pela Imersão

No fim das contas, “Retrato de um Certo Oriente” é um filme sobre a imigração, sobre o deslocamento não apenas físico, mas também da alma. Os irmãos libaneses fugindo da guerra para encontrar um novo lar no Brasil, o choque com a cultura amazônica, tudo isso é central. Mas o filme vai além: ele joga luz sobre a alteridade e a tolerância, mostrando que o relacionamento entre Emilie (cristã) e Omar (muçulmano) é uma metáfora poderosa para a convivência possível entre diferentes, apesar dos preconceitos e traumas que cada um carrega.

E a passagem pela aldeia indígena? Um respiro, uma utopia dentro da própria utopia. A personagem indígena que atua como ponte entre mundos é um lembrete de que a cura pode vir de lugares inesperados, de culturas que, à primeira vista, parecem distantes, mas que guardam uma sabedoria ancestral sobre a convivência. O preto e branco não é só uma escolha estética; ele evoca o passado, as memórias que podem curar as feridas do tempo. É um filme que, apesar de seus pequenos deslizes, nos convida a uma reflexão importante sobre a história, sobre quem somos e sobre o que podemos aprender com o outro.

Sair da Ópera de Arame depois de assistir a “Retrato de um Certo Oriente” é ter a certeza de que o cinema nacional, quando quer, sabe mexer com a gente. Não é uma obra fácil, não é um filme para assistir de olhos fechados. É uma provocação, um convite para pensar sobre nossas próprias “terras” e sobre como lidamos com aqueles que vêm de “outros orientes”. E você, qual o seu “certo oriente”? Onde as suas memórias se misturam com as suas escolhas? A resposta, meu caro leitor, é a sua.

Escrito por

Erick Sant Ana

Redator, negro, TDAH, amante da cultura geek e de uma boa coquinha gelada. Adoro histórias, sejam elas contadas através de livros, filmes, séries, HQs ou até mesmo fofocas. Sempre vi nos livros não apenas uma válvula de escape, mas também uma forma de diversão. Com o tempo, essa paixão se expandiu para o universo dos filmes e das séries. Após anos sem ter com quem compartilhar essas paixões, decidi falar sobre elas na internet.