Macacos

Quando a cortina se abre, não há um cenário elaborado, nem adereços. Ouvimos “MACACO. Ma. Ca. Co. Ma-ca-co. Macaco. MACACO”. A ofensa racista, ecoada em tons de arquibancada de futebol, chega antes do que Clayton Nascimento no palco. Sua voz repete e repete insistentemente, vociferando cada sílaba. “MA-CA-CO”.

Clayton Nascimento entra em cena, apenas ele, sua voz e uma luz suave que o ilumina. Ele está ali, de pé, segurando a plateia com uma energia palpável. E então começa o espetáculo.

Se existe uma palavra capaz de descrever a essência da peça teatral “Macacos”, essa palavra é impacto.  Escrita, dirigida e atuada pelo próprio Clayton Nascimento, “Macacos” nasceu da indignação, mas que se transformou em uma poderosa ferramenta de denúncia e reflexão sobre o racismo no Brasil. 

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Transformando a dor em arte

O espetáculo, apresentado durante o Festival de Curitiba, teve suas origens em um episódio infame de racismo durante uma partida de futebol em 2014, quando o goleiro Aranha foi insultado pela torcida adversária. Esse evento foi o catalisador para a criação do espetáculo. Clayton decide ressignificar a palavra e dar vida a um monólogo que não apenas confronta a história de opressão racial no Brasil, mas também convida o público a enfrentar sua própria complacência diante das injustiças. 

“Macacos” que a princípio foi concebida como breves cenas de 15 minutos, para uma disciplina universitária, hoje contem mais de 3 horas de duração e não só é aclamada por nomes como Fernanda Montenegro, Marieta Severo, Renata Sorrah, Zezé Polessa e Camila Pitanga, mas também conquistou o prêmio Shell e o Prêmio da APCA, uns dos mais prestigiados do teatro brasileiro.

Macacos Clayton Nascimento
Foto Annelize Tozetto

Nascimento, com sua presença imponente, através da dramaturgia, compartilha fragmentos de sua própria história, desde a paixão inicial pelo teatro, sua ingressão no meio acadêmico, até os momentos angustiantes de discriminação racial que enfrentou. Como o incidente em que foi injustamente acusado de roubo. 

Durante uma espera comum por um ônibus, Clayton foi confrontado por um casal que o acusou veementemente de ter assaltado um estabelecimento nas proximidades. Surpreso e indignado, ele negou veementemente as acusações, buscando ajuda ao seu redor. No entanto, ao invés de apoio, encontrou apenas o silêncio e a indiferença das testemunhas que preferiram se afastar.

Se sabemos como tem acabado a vida do negro no Brasil nos últimos anos, nós já sabemos como acabará esta peça.

Essa experiência profundamente traumática revelou a Clayton a dura realidade de ser julgado e condenado sem provas, simplesmente por se encaixar no perfil estereotipado de um suposto criminoso, simplificando: apenas por ser um homem preto. Foi um momento que o confrontou com a brutalidade do preconceito racial que permeia a sociedade brasileira, alimentado por estereótipos e pela falta de empatia. 

A partir de sua história, no palco, Clayton mergulha fundo em sua narrativa, desafiando a plateia a encarar a verdade inconveniente do racismo. Ele utiliza a quebra da quarta parede, falando diretamente ao público, convidando cada um a refletir sobre a brutalidade história do Brasil sob a perspectiva negra, especialmente no que diz respeito à violência policial e ao genocídio da juventude negra. Tendo como ponto central a história de Terezinha Maria de Jesus.

A história de Terezinha Maria de Jesus

Terezinha Maria de Jesus, perdeu seu filho, Eduardo, para a violência policial aos nove anos, o garoto foi atingido por um tiro na cabeça enquanto brincava na porta de casa, no Complexo do Alemão, zona norte do Rio. Enquanto a mãe estava na cozinha e a criança brincava na porta de casa, ouviram-se disparos. Ela correu em direção ao filho, que já se encontrava morto. Segundo testemunhas, o disparo foi feito por um PM durante uma operação na região. A morte gerou uma grande comoção e protestos por justiça.

Terezinha Maria de Jesus não se resignou diante da perda devastadora de seu filho. Pelo contrário, ela se tornou uma líder na luta contra a violência policial e o genocídio da população negra no Brasil. Terezinha não foi ouvida pela justiça e nem pela mídia, mas foi ao ter sua história contada no teatro que sua luta ganhou força. 

Foto Annelize Tozetto

Clayton incorpora a história de Terezinha de forma magistral, transformando uma tragédia pessoal em um testemunho coletivo da luta contra o genocídio negro. O relato da luta de Terezinha por justiça não é apenas uma história contada, mas uma presença tangível no espetáculo, destacando a realidade brutal enfrentada por muitas famílias negras no país. É impossível não chorar no momento em que a carta escrita por Terezinha para seu filho é lida.

Ao incorporar a história de Terezinha em “Macacos”, Clayton Nascimento não apenas homenageia a luta incansável de uma mãe, mas também destaca a urgência de enfrentar os abusos cometidos em nome da segurança pública. Ele transforma a tragédia individual em uma narrativa coletiva, compartilhando a dor de Terezinha como uma denúncia da violência sistemática que assola as comunidades negras. 

Com a repercussão do espetáculo, seu caso foi reaberto e Terezinha pode finalmente ter sua justiça. Nesse ponto, “Macacos” é um lembrete poderoso de que o teatro pode ser uma ferramenta para a conscientização e a mudança, capaz de despertar empatia e solidariedade em meio às injustiças.  

O “surgimento” do racismo

Após compartilhar a história de Terezinha Maria de Jesus, Clayton Nascimento nos conduz por uma jornada na qual busca desvendar as origens do racismo. Ele mergulha na história do Brasil, desvendando os momentos-chave que moldaram a sociedade brasileira e perpetuaram a desigualdade racial.

Durante o espetáculo, Clayton questiona quando exatamente “surge” o racismo, passando por eventos históricos que estabeleceram as bases desse preconceito arraigado. Ele desafia a versão romantizada da história do Brasil, revelando o papel crucial da colonização, da escravidão e da abolição da escravatura, mostrando que a abolição foi uma decisão política para manter a ordem social, sem efetivamente garantir direitos e inclusão para os negros libertos.

Macacos Clayton Nascimento
Foto Annelize Tozetto

Além disso, “Macacos” aborda a criação da polícia militar no Brasil e sua relação intrínseca com o controle e repressão das populações negras e pobres. Clayton desafia a narrativa oficial ao questionar o papel das instituições estatais na perpetuação do genocídio negro, evidenciando a violência policial como um reflexo direto de um sistema profundamente enraizado em racismo e discriminação o que acaba sendo reverberado até hoje e o caso da Terezinha Maria de Jesus só comprova o ponto.

Ao revisitar os capítulos sombrios da história do Brasil, “Macacos”, vai por um caminho didático, mas que também incita à ação e à reflexão. Ele nos convida a repensar nossos conceitos sobre o passado e suas consequências no presente. Clayton Nascimento, com sua voz e seu carisma, personifica uma voz coletiva que exige justiça e dignidade para o povo negro brasileiro.

“Macacos” é uma obra que reverbera além dos limites do teatro, deixando uma marca indelével na consciência daqueles que testemunham sua mensagem transformadora. Clayton Nascimento não apenas atua, ele resiste, denuncia e reivindica, convidando cada um de nós a fazer o mesmo. Esta é uma obra que não se esquece facilmente; ela ecoa em um chamado à justiça e à transformação.

Macacos Clayton Nascimento
Foto Annelize Tozetto

Para pessoas negras, assistir a “Macacos” pode ser uma experiência emocionalmente intensa. A peça expõe as injustiças enfrentadas pela comunidade negra de forma crua e direta, o que, se por um lado pode servir como força motivadora para buscarmos mudança, por outro pode despertar memórias dolorosas e sentimentos profundos de indignação e tristeza. É importante abordar essa obra com cautela e autocuidado.

Ao final da apresentação, quando Clayton Nascimento ergue a bandeira com os rostos das vítimas do genocídio negro, o público não aplaude apenas uma performance; eles reconhecem a urgência de um movimento por mudanças reais e duradouras. É um momento de união e solidariedade, um chamado para enfrentarmos juntos as injustiças que ainda assolam nossa sociedade.

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Escrito por

Erick Sant Ana

Redator, negro, TDAH, amante da cultura geek e de uma boa coquinha gelada. Adoro histórias, sejam elas contadas através de livros, filmes, séries, HQs ou até mesmo fofocas. Sempre vi nos livros não apenas uma válvula de escape, mas também uma forma de diversão. Com o tempo, essa paixão se expandiu para o universo dos filmes e das séries. Após anos sem ter com quem compartilhar essas paixões, decidi falar sobre elas na internet.