

Tem filme que chega gritando, como aquele amigo que já entra na festa contando piada alta e querendo ser o centro das atenções. “Apenas Coisas Boas” não é esse amigo. Ele é o cara encostado no canto da sala, com olhar meio perdido, meio convidando. E é exatamente por isso que você não consegue parar de olhar.
Estreando na 14ª edição do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, festival conhecido por garimpar obras que sabem provocar sem precisar levantar a voz, o longa de Daniel Nolasco escolhe o caminho mais ingrato (e, por isso mesmo, mais interessante): o da contenção. Aquele cinema onde o que não é dito pesa mais que qualquer discurso inflamado. Onde a câmera fica mais tempo num rosto hesitante do que numa paisagem bonita. Spoiler: tem as duas coisas.
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Faroeste de Goiás com pegada queer e zero intenção de ser didático
Pra quem ainda não se atualizou: “Apenas Coisas Boas” é um drama romântico queer que se passa em Catalão, interior de Goiás, em pleno 1984. Mas calma, não é mais um filme de sofrimento LGBTQ+ com trilha de violino triste e chuva na janela.
Aqui, a referência estética flerta com o faroeste americano, mas troca os duelos armados por silêncios ensurdecedores. O protagonista, Antonio (Lucas Drummond), é um fazendeiro solitário que segue a cartilha clássica do “homem de poucas palavras”. Até que um dia, o destino – ou a ironia do roteiro – coloca na sua porta o motociclista Marcelo (Liev Carlos), depois de um acidente que mais parece desculpa poética pra fazer esses dois corpos se esbarrarem.
E é aí que o filme começa a brincar com os gêneros: do romance erótico ao drama psicológico, passando por thriller de tensão acumulada. E tudo isso embalado por uma fotografia quente e arquitetônica, que faz a paisagem rural de Goiás parecer ao mesmo tempo um paraíso e uma armadilha.


O cinema do quase, do gesto suspenso e do desejo que não grita
Uma palavra resume a direção de Nolasco aqui: sofisticação. Não aquela de tapete vermelho e elogios vazios, mas a sofisticação de quem sabe exatamente quando segurar a câmera um segundo a mais — só pra deixar a gente desconfortável. Ela é precisa como um corte de navalha: seca, econômica, mas cheia de segundas intenções, onde o espaço e o corpo são igualmente protagonistas.
Se a primeira metade de “Apenas Coisas Boas” fosse uma playlist, ela seria feita de batidas lentas, riffs de guitarra ecoando à distância e gemidos contidos no fundo da mixagem.
A fotografia de Larry Machado é um espetáculo à parte. Tons quentes, planos simétricos, e aquele uso de zoom-in que no cinema brasileiro costuma ser sinônimo de cafonice, mas que aqui vira linguagem expressiva. Existe um cuidado quase arquitetônico na forma como os corpos ocupam o espaço. Cada cena parece perguntar: quem está dominando quem? O homem? O ambiente? O desejo?
A trilha sonora segue o mesmo jogo de provocação: ela não invade, não manipula. Ela observa.
E aí vem o erotismo. Sem pedir licença. Sem tentar disfarçar. Sem trabalhar na chave da ousadia calculada. Aqui, o sexo é direto, frontal, mas nunca vulgar. Tem nudez? Tem. Tem sexo oral explícito? Também. Mas a câmera filma tudo com um olhar que mistura crueza e romantismo. Não é provocação vazia. É um registro da intimidade como ela é: às vezes bonita, às vezes estranha, sempre humana.
E é curioso como mesmo nas cenas mais explícitas, o filme nunca faz pose de “olha como eu sou corajoso”. Pelo contrário. As cenas acontecem com a mesma naturalidade com que os personagens acendem um cigarro ou encostam numa cerca.
É cinema de corpo, mas também de vazio. Porque entre um toque e outro, sobra espaço. Entre um gozo e outro, sobra silêncio.


O que era “Apenas Coisas Boas” vira tensão
Só que, como tudo na vida (e principalmente na vida a dois), a tensão sexual não dura pra sempre. E o filme sabe disso. Na segunda metade, o que antes era calor vira ausência. O clima de conto erótico rural dá lugar a um silêncio mais gelado, mais incômodo.
O erotismo que antes unia, agora distancia. O desejo que antes era impulso, agora parece um peso morto largado no meio do quarto.
E aí o filme muda de tom. Sem avisar, sem explicar. A gente segue com Antonio, vendo ele se mover entre rituais de desapego e gestos automáticos, como quem tenta apagar rastros de algo que talvez nem ele mesmo saiba nomear direito.
A partir da metade, “Apenas Coisas Boas” parece sofrer uma mutação de DNA. Sai o faroeste erótico, entra um quase-thriller psicológico, onde o clima de conto de fadas suado dá lugar a uma tensão de casal em colapso. O que parecia paixão vira um campo minado emocional. O que era certeza vira dúvida.
E o roteiro faz isso com uma coragem rara: ele não explica tudo. Não entrega respostas fáceis. Você termina o filme meio zonzo, se perguntando o que de fato aconteceu. Uma narrativa que te trata como adulto, não como aluno de interpretação de texto.
Masculinidade, repressão e o que significa amar no meio do nada
Por trás de todo o flerte visual com o faroeste e os códigos queer, o filme é, no fundo, um tratado sobre masculinidade sufocada. Antonio e Marcelo são dois homens tentando se encontrar – um no outro e neles mesmos – num cenário que foi feito pra engolir qualquer desvio de comportamento.
A ambientação rural aqui não é cenário decorativo. Ela é metáfora viva. Cada cerca, cada estrada de terra, cada campo aberto funciona como extensão do isolamento emocional desses personagens. Não por acaso, as críticas têm destacado como o filme coloca personagens LGBTQ+ fora dos centros urbanos, tirando eles daquele clichê “gay de apartamento em São Paulo”. Aqui, o conflito é com a terra, com o silêncio, com o corpo que quer e não pode.
E se tem uma coisa que a direção faz bem é brincar com os códigos da masculinidade rural sem cair na caricatura. A direção de Nolasco brinca com os códigos do faroeste, mas subverte tudo. Aqui o duelo não é com armas. É com o próprio espelho.
Existe desejo, existe afeto, existe raiva. Existe tudo, menos obviedade.


O que fica pra gente: Sobre casamentos, fases e o medo de não caber mais no próprio desejo
No fim das contas, por baixo de todas as camadas de gênero cinematográfico, “Apenas Coisas Boas” é um filme sobre o que acontece depois do “felizes para sempre”. Sobre como o amor se transforma. Como ele migra da obsessão pra rotina. Da tensão pro tédio. Da paixão pra aquela fase cinza onde ninguém sabe direito se ainda é amor ou só costume.
É um filme que começa com a fantasia do encontro e termina com a realidade da convivência. Que começa com o toque e termina com o abismo. Que provoca, mas não entrega. Que cutuca, mas não explica.
E se você, leitor, estava esperando uma catarse, uma cena final com discurso emocionado e redenção… pode tirar o cavalinho da chuva. Aqui, o final é aquele silêncio que fica entre duas pessoas quando já se disseram tudo – ou quase tudo – e mesmo assim ainda sobra coisa engasgada.
Um filme que exige paciência, mas paga com profundidade
“Apenas Coisas Boas” não é um filme fácil. Nem é pra ser. Ele pede do espectador o mesmo que pede dos personagens: paciência, entrega e disposição pra lidar com o que não cabe nas palavras.
É cinema de gesto contido, de olhar que fala mais que boca. É sobre desejo, sobre medo, sobre masculinidades em colisão e, acima de tudo, sobre a dificuldade de ser honesto – com o outro e com a gente mesmo.
Se você gosta de finais redondinhos, trilhas dramáticas e explicações didáticas… talvez esse filme não seja pra você. Mas se topar o risco de sair da sala com um nó na garganta e uma pergunta atravessada no peito… então, seja bem-vindo ao desconforto.
Porque às vezes, o melhor que um filme pode fazer é deixar a gente sem saber direito o que sentir.
Assista ao trailer de Apenas Coisas Boas
Onde assistir Apenas Coisas Boas?
A estreia nacional do filme aconteceu no dia 17 de junho durante a 14ª edição do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba e voltará em breve aos cinemas.