Anora

Nos anos 90, “Uma Linda Mulher” (Pretty Woman) se tornou um verdadeiro clássico da cultura pop. Richard Gere e Julia Roberts protagonizaram um conto de fadas moderno que conquistou o público com seu romantismo e carisma irresistíveis. O filme inovou ao trazer uma protagonista que carregava um estereótipo que o público não estava acostumado a torcer, mas que, ao longo da história, revelava suas camadas, sonhos e fragilidades. Décadas depois, “Anora” surge como uma versão crua e desglamourizada dessa história, trazendo um olhar muito mais cínico sobre os encontros entre mulheres marginalizadas e homens extremamente ricos. Mas, embora leve o nome de sua protagonista, a história não parece ser sobre ela.

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Um conto de fadas sem magia

Dirigido por Sean Baker, “Anora” chegou ao Festival de Cannes e levou a Palma de Ouro, consolidando o cineasta como um dos grandes nomes do cinema indie contemporâneo. A história gira em torno de Anora (Mikey Madison), uma dançarina erótica do Brooklyn que, em um surto de impulsividade, se casa com Vanya, filho de um bilionário russo. A partir daí, a trama se desenrola em um turbilhão de acontecimentos inesperados, mesclando humor ácido e uma crescente tensão dramática.

Baker, que já mostrou sua habilidade em retratar realidades marginalizadas com um olhar humanizado em filmes como “Projeto Flórida”, constrói aqui um universo que parece vibrante e autêntico. O filme tem ritmo, é divertido e sabe envolver o espectador, o que explica o burburinho em torno dele. Mas, ao mesmo tempo, esconde uma fragilidade narrativa difícil de ignorar. O filme flerta com a crítica social, mas também cai em algumas armadilhas ao não definir exatamente o que quer dizer sobre poder, dinheiro e desigualdade.

Mikey Madison brilha em cena

Anora

Se há algo inquestionável em “Anora”, é a performance de Mikey Madison. A atriz entrega uma personagem complexa, oscilando entre vulnerabilidade e resistência. Sua presença em cena é magnética, e é impossível não se envolver com sua jornada, mesmo quando as decisões da personagem soam incoerentes.

Madison, que já demonstrou seu talento em “Better Things” e “Pânico 5”, parece ter encontrado em Anora um papel que permite explorar toda a sua versatilidade. Seu olhar transmite uma mistura de pragmatismo e ingenuidade, o que faz com que sua personagem seja, ao mesmo tempo, fascinante e frustrante. Sua indicação ao Oscar de Melhor Atriz é completamente merecida, assim como a nomeação do filme para Melhor Filme. “Anora” pode ter seus problemas, mas é uma obra marcante que definitivamente merece estar na conversa.

Um filme chamado “Anora” que não é sobre ela

Talvez o maior problema do filme esteja na desconexão entre seu título e sua protagonista. “Anora” se chama “Anora”, mas a história não é realmente sobre ela. Não sabemos quais são seus sonhos, suas fragilidades ou suas verdadeiras motivações. Ela não parece ter uma agência própria na narrativa; serve mais como um acessório para os eventos do que como o centro deles. Se trocássemos Ani por qualquer outro elemento, a trama seguiria praticamente intacta.

O carisma de Mikey Madison faz com que a gente torça por ela, mas por quê exatamente? O roteiro nunca nos dá uma razão concreta para isso, e a personagem, que deveria ser o coração do filme, acaba se tornando quase um enigma vazio. E, sendo exagerado, parece que a própria escolha do nome do filme não respeita a escolha da protagonista. Ela passa o filme todo dizendo que prefere ser chamada de Ani e cá estamos com o filme sendo “Anora”.

No final, ainda a colocam como uma donzela a ser salva por um homem que, em uma cena desconfortavelmente didática, olha para ela de forma humanizada e declara: “Eu prefiro Anora”. Essa escolha narrativa diminui ainda mais a personagem e reforça a sensação de que o filme, no fundo, nunca foi sobre ela.

E se isso já incomoda, a cena final no carro só piora a situação. Depois de tudo o que passou, Anora é salva pelo “homem bom” e, como forma de agradecimento, o recompensa com sexo. Esse desfecho não só reduz sua trajetória a um ciclo de dependência masculina, mas também enfraquece qualquer possibilidade de desenvolvimento real para a personagem. No final das contas, Anora continua sendo definida pela maneira como os homens a enxergam e pelo que eles esperam dela.

Anora

Um romance que nem o roteiro acredita

“Anora” quer ser um retrato cru e realista de uma jovem tentando encontrar um lugar no mundo, mas em várias cenas, a trama simplesmente não convence. A personagem principal é construída como uma mulher esperta e prática, alguém que sabe jogar as cartas que tem na mão. E, no entanto, conforme a história avança, suas escolhas se tornam inexplicáveis.

O maior exemplo disso é sua insistência em ver legitimidade no casamento com Vanya, mesmo quando está claro para todos ao seu redor (e para o espectador) que aquilo não faz sentido. Baker nos faz acreditar que Ani quer se reconectar com o marido como se houvesse algo real ali, mas tudo o que vemos entre os dois sugere apenas um relacionamento de conveniência. Se ao menos houvesse uma cena que mostrasse algum tipo de conexão genuína entre eles — algo além de drogas, festas e sexo — poderíamos até comprar essa ideia. Mas o filme nunca nos dá esse momento. A relação entre Ani e Vanya nunca é mais do que superficial, e sua persistência acaba parecendo desesperada e patética, o que contradiz totalmente a imagem que o próprio roteiro tenta construir da personagem.

Se Baker queria nos mostrar uma mulher perdida, presa em suas próprias ilusões, ele falha ao dar coerência a essa trajetória. A sensação que fica é de que o roteiro força certas situações apenas para criar tensão e prolongar o drama, sem se preocupar se aquilo faz sentido para o desenvolvimento da personagem.

E se “Anora” tivesse uma sequência?

No fim das contas, “Anora” é um filme que provoca discussão. Há momentos brilhantes, especialmente na atuação de Mikey Madison e na forma como Baker cria um mundo cheio de contrastes. Embora eu tenha me divertido horrores com o filme, quanto mais penso nele, mais problemas consigo encontrar. Mesmo com os tropeços narrativos, é uma produção que vale a pena assistir e que justifica as nomeações ao Oscar.

Porém, a falta de coerência na jornada da protagonista acaba tornando a experiência frustrante em alguns momentos. Claro, ninguém deveria avaliar um filme com base no que gostaria que ele fosse, mas, honestamente? É difícil não sair da sessão imaginando uma continuação onde Ani, cansada de ser tratada como lixo, viaja para a Rússia e destrói a família de Vanya ao estilo John Wick. Agora, sim, esse seria um filme que eu pagaria para ver.

Assista ao trailer de Anora

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Escrito por

Erick Sant Ana

Redator, negro, TDAH, amante da cultura geek e de uma boa coquinha gelada. Adoro histórias, sejam elas contadas através de livros, filmes, séries, HQs ou até mesmo fofocas. Sempre vi nos livros não apenas uma válvula de escape, mas também uma forma de diversão. Com o tempo, essa paixão se expandiu para o universo dos filmes e das séries. Após anos sem ter com quem compartilhar essas paixões, decidi falar sobre elas na internet.