Particularmente, filmes que abordam a complexidade das emoções e relações humanas são e sempre serão uma eterna paixão para mim. Qual mais o papel de se reconhecer e se questionar através da tela do cinema? É uma linguagem única para compreender a vida e ter diferentes perspectivas sobre como somos, estamos ou seremos. É pauta para terapia e para anos de psicanálise. Se tratando de ‘Anatomia de uma Queda’, nós temos um empurrãozinho da ficção (não muito longe da realidade) diante de uma história complexa e com um peso dramático imenso. No meio disso, nós encontramos emoções difusas e até controversas; uma relação cercada de frustrações, raiva, mágoa e ressentimentos; um casamento normal por fora, mas em ruínas por dentro e um conflito estratosférico entre os fatos e a verdade, e o julgamento de uma única suspeita. Te dou boas-vindas a um longa enigmático, tenso e imersivo. 

Sinopse

Durante o último ano, Sandra (Sandra Hüller), uma escritora alemã, e Samuel (Samuel Theis), seu marido francês, viveram juntos com Daniel (Milo Machado Graner), o filho de 11 anos do casal, em uma pequena e isolada cidade nos Alpes. Quando Samuel é encontrado morto, a polícia passa a tratar o caso como um suposto homicídio, e Sandra se torna a principal suspeita.

Um roteiro muito bem equilibrado e explorado 

Falar de anatomia sem uma estrutura narrativa seria um pecado, já que a Anatomia é uma ciência que estuda a estrutura do organismo humano e sua composição. O filme pelo nome é interpretado como algo complexo, científico, massante ou até mesmo chato. Na verdade, o que temos aqui é totalmente o contrário. As vidas apresentadas no longa são, de certa forma, simples e imersas na rotina. A forma como isso é trabalhado não possui complexidade alguma, nos deixa à vontade para analisar os fatos e entendê-los sem nenhum esforço. 

Anatomia de uma Queda: O conflito das emoções humanas com a dura realidade da vida {Crítica}
Imagem: Divulgação / Diamond Filmes

Mas o que eu quero destacar aqui, é o trabalho de estrutura e construção de um roteiro fluído e consistente. Anatomia de uma Queda é uma orquestra muito bem executada dos fatos e acontecimentos cronologicamente conduzidos, que fazem-nos imergir numa narrativa convidativa, nada tediosa ou cansativa demais. O cansativo é algo comum em filmes onde temos a presença de um tribunal para julgar todos os fatos apresentados para o espectador. Nesses momentos, é que este longa se apresenta claro, objetivo, às vezes até cômico, mas sempre muito bem convidativo para o espectador entender cada palavra e cada ação do julgamento. Fazer com que a mensagem seja entendível e clara para o receptor é algo simples que qualquer obra devia seguir. Aqui, ‘Anatomia de uma Queda’ faz sem esforço e se mostra grandiosa, inclusiva e esclarecedora. Trabalho impecável que somente a Diretora Justine Triet poderia nos presentear, já que, segundo ela, optou pela simplicidade ao conduzir a obra. 

A dramaticidade é o que dá o peso ideal para a obra 

O drama é o fio condutor que liga os fatos com os personagens e as emoções tão bem apresentadas no longa. Desde as músicas e notas particulares que Milo, o filho do casal, toca em seu piano com muito sentimento envolvido, até as cenas mais profundas, pesadas, emocionantes e angustiantes. ‘Anatomia de uma Queda’ é um drama humano e sincero demais. Sincero nos diálogos, nas expressões de medo, desespero e dor dos personagens, na interpretação das cenas de conflito, nos momentos melancólicos, enfim. É um conjunto de elementos envoltos no drama que entregam uma obra forte e impactante como esta. 

Anatomia de uma Queda: O conflito das emoções humanas com a dura realidade da vida {Crítica}
Imagem: Divulgação / Diamond Filmes

O peso e perigo do fracasso e da mágoa 

Dentre tantas emoções e sentimentos que o longa além de despertar, também explora em sua obra, os dois de maior impacto e que se destacaram na narrativa são o fracasso e a mágoa, que fizeram a história transbordar e afunilaram todas as perspectivas sobre a história e seus desdobramentos. Mas o que temos de especial nisso? Acontece que, a principal referência ao tratarmos desses dois pontos, é o filme A História de um Casamento (2019), onde, segundo a diretora, temos uma resposta para o personagem Charlie Barber, vivido por Adam Driver. A conexão com o longa de 2019 é algo que impressiona e nos deixa atônitos e vidrados neste momento de conflito dos personagens, das emoções e dos caminhos que a obra toma. Só tenho uma coisa para dizer, ou melhor, Marcia Sensitiva tem — “Quanta gente você já falou que é culpada pelo teu fracasso. Seu fracasso é você mesmo. Carrega nas costas!”. 

O longa trabalha com vieses que fazem-nos ficar obcecados na narrativa

Um trabalho estupendo que faz o espectador entrar em conflito com os fatos, a verdade e os sentimentos sobre os personagens e sobre a obra. A gente se identifica, se vê sem saída para avaliar a dar o veredito sobre os fatos e navegar sobre as hipóteses durante o julgamento. Exercitar a capacidade crítica e analítica é o papel que esta obra cumpre muito bem, já que nos tira do piloto automático ou de uma familiaridade com o clichê, para nos deixar vigilante quanto ao que vemos e sentimos no desenrolar deste enredo complexo e, ao mesmo tempo, revelador e fantástico.  

Sandra Hüller é excepcional em sua atuação 

Sandra Hüller interpreta Sandra, uma mulher destemida, cansada da vida monótona e às vezes tediosa que vive com seu marido, Samuel, e o filho, Daniel. Acima de tudo, Sandra é uma mulher cheia de desejos, sonhos, com fome de viver, mas com sentimentos complexos. O modo como a atriz explora isso e nos arrebata em sua interpretação é de uma forma brilhante e transformadora. Nós somos apresentados a uma personagem complexa e que se torna um enigma na trama, seja no sentir, no agir e no dizer. 

Anatomia de uma Queda: O conflito das emoções humanas com a dura realidade da vida {Crítica}
Imagem: Divulgação / Diamond Filmes

Sandra pode ser vista como alguém fria e ausente de emoções através dos fatos apresentados no desenrolar do julgamento e no modo como lida com todo este processo. Mas acredito que há um certo caminho de emoções que ela percorre e que podemos identificar. Sandra se torna mais vulnerável e se permite sentir mais no decorrer da narrativa. Em alguns momentos, as emoções são confusas pois não há um jeito certo de sentir e agir em situações difíceis que nunca passamos antes. O sentir fica perdido, agoniado, assustado. Não tem pra onde ir. Presenciar a vulnerabilidade tomando espaço no personagem de Sandra nos mostra o quão complexo é o sentir, o que torna extremamente difícil a interpretação da obra. 

Milo Machado Graner é a chave para o sucesso do longa 

O personagem Daniel, interpretado por Milo Machado Graner, é uma das coisas mais lindas que já vi no cinema. Temos uma criança em total vulnerabilidade durante todo o filme, mas que traz à tona um elemento que pesa muito mais nas cenas — o racional. Integrar uma criança ao elenco de um drama é algo difícil, e quando esta criança é capaz de racionalizar na narrativa e oferecer um peso maior à história, isso se torna algo inacreditável. 

Anatomia de uma Queda: O conflito das emoções humanas com a dura realidade da vida {Crítica}
Imagem: Divulgação / Diamond Filmes

Milo emociona muito em sua interpretação, seja nos momentos simples ao lado de seu cachorro, tocando piano ou preenchendo as cenas com as emoções à flor da pele. O personagem Daniel nos oferece coragem para enfrentar tempos difíceis, inteligência emocional e força para passar pelas situações que pedem isso, e momentos de vulnerabilidade extrema que pedem para chorarmos e encontrarmos nosso tempo.

‘Anatomia de uma Queda’ é forte, instigante e traz à tona a vulnerabilidade humana 

Anatomia de uma Queda: O conflito das emoções humanas com a dura realidade da vida {Crítica}
Imagem: Divulgação / Diamond Filmes

É redenção. É entregar-se a todos os sentimentos e emoções que circundam a vida real. Esta é uma obra potente que, sem dúvidas, já marcou o cinema e a vida de quem teve a oportunidade de assistir. Durante a sessão, a reação das pessoas com a obra foi algo que me impressionou. É um misto de sensações. É estar diante de algo que confronta e questiona, que faz nos identificarmos com a complexidade das nossas emoções e o quão difícil é gerenciá-las em uma relação. Entender a nós mesmos é um trabalho difícil, imagina tentar entender o outro, suas motivações, suas mágoas, inseguranças, traumas, conflitos internos e sentimentos reprimidos, escondidos e calados. Não é a anatomia de uma queda que presenciamos, mas a anatomia dos sentimentos, das emoções e das relações humanas. Uma queda no interno dói mais que uma queda no externo. A gente despenca na realidade. Alguns conseguem levantar, se recuperar, tentar se curar, seguir machucados ou nunca mais sarar. Outros, caem para jamais levantar.

Escrito por

Alison Henrique

Publicitário, Empresário, Dançarino, Cantor, Estudante de Filosofia e, claro, APAIXONADO por Cinema, Arte, Música e Livros. Crítico de Cinema aqui no {Des}Construindo o Verbo com muito sentimento, emoção e boas reflexões pra gente mergulhar nas obras do cinema contemporâneo. Seja Ficção, Drama, Romance, DC, Marvel, Ficção Científica, Bom, Ruim, Médio ou Péssimo. A gente sempre vai se encontrar por aqui pra discutir um pouco sobre tudo. Instagram: @alisonxhenrique.