Há quem diga que o gênero de super-herói está saturado, com narrativas previsíveis e fórmulas desgastadas, especialmente após a influência da Marvel nos últimos 15 anos. No entanto, o que realmente precisamos é de novidade, algo que fuja das convenções e traga frescor para as telas, a própria Marvel já entendeu isso. E é exatamente isso que “Supacell” entrega: uma abordagem inovadora e original que rapidamente conquistou o público, alcançando o primeiro lugar no top 10 global da Netflix, com impressionantes 11,8 milhões de visualizações em uma única semana. Além disso, a série recebeu uma classificação perfeita no Rotten Tomatoes, um feito notável, provando que o gênero ainda pode surpreender e encantar.
Criada por Rapman, um rapper, diretor de cinema e roteirista britânico, “Supacell” se destaca pela forma como utiliza o gênero de super-heróis para contar uma história envolvente e que, ao mesmo tempo, ilumina questões importantes, como a anemia falciforme. Essa condição, que afeta desproporcionalmente a população negra, é colocada no centro da narrativa, oferecendo uma perspectiva rara e necessária sobre o tema.
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O Gênero de Super-Heróis sob uma Nova Perspectiva
Historicamente, a ficção científica e os super-heróis têm sido campos dominados por narrativas brancas, onde personagens negros muitas vezes são relegados a papéis secundários ou estereotipados. “Supacell” subverte essa tradição, ao mesmo tempo em que mergulha no afrofuturismo, trazendo a intersecção entre a cultura negra, tecnologia e a história para o primeiro plano. Ao contar uma história de super-heróis através de uma lente negra, Rapman envia uma mensagem clara: a ficção científica precisa incluir todas as vozes, e os negros devem contar suas próprias histórias.
Apesar de seu orçamento modesto, “Supacell” consegue criar cenas de ação e momentos de tensão que mantêm o espectador engajado. Embora seus seis episódios não tenham “o brilho” das grandes produções de Hollywood, mas a direção de Rapman compensa isso com um estilo visual único e uma trilha sonora que complementa perfeitamente a narrativa. A forma como ele orquestra as interações entre os personagens e os eventos que desencadeiam suas habilidades é tanto impressionante quanto estimulante, procurando focar nos desafios e dilemas de pessoas comuns que descobrem superpoderes. O resultado é uma história mais intimista, mas não menos impactante.
Explorando a Experiência Negra através da Ficção Científica
“Supacell” se passa no sul de Londres, onde seguimos personagens como Michael (Tosin Cole), um entregador de pacotes, Andre (Eric Kofi Abrefa), um ex-presidiário tentando reconectar-se com seu filho, Tazer (Josh Tedeku), um jovem envolvido com gangues, Sabrina (Nadine Mills), uma enfermeira que enfrenta desafios no trabalho, e Rodney (Calvin Demba), um traficante de drogas lutando para sobreviver. O que une esses personagens é a descoberta de superpoderes, um evento que muda suas vidas e os coloca em uma jornada de autodescoberta e luta contra as adversidades.
Apesar da premissa sobrenatural, a série aborda de forma realista temas como racismo, discriminação, e desigualdade social. A escolha de Rapman de utilizar super-heróis para iluminar a experiência negra na Inglaterra é tanto uma homenagem ao gênero quanto uma crítica às suas limitações históricas.
Personagens que Refletem a Realidade
Diferente das narrativas convencionais de super-heróis, onde os protagonistas são geralmente moralmente puros ou claramente definidos como heróis ou vilões, os personagens de “Supacell” são complexos e multifacetados. Esses personagens, tão reais em suas falhas e lutas, dão à série um ar de autenticidade. Eles não são os heróis tradicionais que vemos nos quadrinhos, mas sim pessoas comuns em situações extraordinárias.
Michael, por exemplo, descobre que pode viajar no tempo e no espaço, mas essa habilidade traz mais desafios do que soluções. Em sua primeira viagem ao futuro, ele percebe que precisa reunir um grupo de pessoas com poderes semelhantes para evitar uma tragédia iminente. Porém, essa missão se mostra mais difícil do que ele esperava, pois os outros personagens têm suas próprias lutas pessoais e estão longe de formar um time coeso.
Andre, que enfrenta preconceito no trabalho devido ao seu passado criminal, tenta desesperadamente ser um bom pai, enquanto Tazer se encontra no limite entre a sobrevivência e a destruição. Sabrina, por sua vez, luta contra o racismo e o sexismo no ambiente de trabalho, onde suas habilidades como enfermeira são constantemente questionadas. Sua determinação em proteger sua irmã das influências negativas ao seu redor adiciona uma camada emocional à sua jornada, tornando-a uma das personagens mais humanas e relacionáveis da série.
Esses personagens são mais do que apenas super-heróis; eles são reflexos das lutas cotidianas enfrentadas por muitos negros na sociedade atual. Através de suas histórias, “Supacell” nos lembra que, mesmo com superpoderes, a vida não se torna automaticamente mais fácil.
Uma Narrativa que Vai Além do Entretenimento
“Supacell” não é apenas mais uma série de super-heróis. Ao explorar questões como tráfico humano, vigilância extrema, anti-negritude global e práticas médicas predatórias, a série se distancia da fantasia escapista que geralmente caracteriza o gênero. Em vez disso, ela utiliza a ficção científica como uma ferramenta para refletir sobre realidades duras e inescapáveis.
O showrunner Rapman constrói uma narrativa que, embora recheada de elementos de ficção científica, permanece ancorada no realismo. A trilha sonora vibrante, que acompanha as cenas, apenas intensifica a sensação de urgência e vitalidade que permeia cada episódio.
Amor Preto em Supacell
Outro aspecto importante da série é o retrato do amor preto, especialmente no relacionamento entre Dionne e Michael. Em meio ao caos e às lutas diárias, o amor deles é uma âncora, um lembrete de que, mesmo em um mundo onde as coisas parecem estar fora de controle, há algo pelo qual vale a pena lutar.
Dionne (Adelayo Adedayo) é uma personagem forte, que apoia Michael em sua jornada, enquanto lida com suas próprias inseguranças e desafios. O relacionamento deles, baseado em respeito e apoio mútuo, é um dos pontos altos da série. Ele mostra que o amor pode ser uma força poderosa, mesmo quando o mundo ao redor está desmoronando.
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Algumas Falhas, Muitos Acertos
Nenhuma obra é perfeita, e “Supacell” não é exceção. Um ponto que merece crítica são os antagonistas subdesenvolvidos, que parecem um tanto unidimensionais em comparação com os protagonistas bem desenhados. Contudo, essa falha não compromete a experiência geral, que permanece envolvente e cheia de momentos de tirar o fôlego.
Com sua trama imprevisível e personagens complexos, “Supacell” é um exemplo de como o gênero de super-heróis pode evoluir. O que poderia ser apenas mais uma história de origem se transforma em uma reflexão profunda sobre a sociedade e as pressões enfrentadas por aqueles que, historicamente, foram marginalizados.
Em última análise, “Supacell” é uma série que vale a pena assistir, não só pelo entretenimento, mas também pela maneira como desafia as convenções do gênero. A série mostra que há espaço para novas narrativas no universo dos super-heróis, especialmente aquelas que dão voz a experiências até então negligenciadas.
Através de sua trama cativante e personagens ricos, “Supacell” nos lembra que o verdadeiro poder não está apenas nas habilidades sobre-humanas, mas na capacidade de contar histórias que ressoam, desafiam e, acima de tudo, refletem a diversidade do mundo em que vivemos. Para quem procura uma série que combina ação, reflexão e representatividade, “Supacell” é uma escolha acertada.